Por Cristiane Oliveira para as Blogueiras Negras
Mês passado fui convidada para um bate-papo com os jovens do Instituto JCPM em Salvador. Este convite, que me pegou de surpresa e me encheu de felicidade, foi feito depois dos educadores do projeto terem trabalhado meu texto “Lidando com o racismo” em sala. Antes de ir falar com eles, eu já tinha lido as cartas que estes jovens escreveram para mim. Nelas, além de relatarem suas impressões sobre meu texto, eles me contaram suas próprias experiências com racismo.
Lá fui eu então conhecer os jovens e falar com eles. Estava meio nervosa, sem saber o que esperar, mas me sentindo extremamente honrada pelo convite e ao mesmo tempo bem ciente do tamanho da responsabilidade que vinha com esta honra. Olhar para eles e ouvir o que tinham a dizer me fez lembrar da adolescente que eu fui, cheia de energia, dilemas e inseguranças próprias dessa fase da vida e, como se isso não fosse suficiente, ainda tendo de lidar com questões de preconceito. O encontro com eles me fez pensar muito sobre os processos que temos de passar ao crescer em uma sociedade hipócrita como a nossa. Depois da conversa com eles, fiquei pensando muito sobre o seguinte:
1. Questão de identidade racial
O brasileiro é um povo todo misturado. A gente cresce ouvindo isso à exaustão e é verdade mesmo: somos misturados. No entanto, apesar dessa miscigenação toda, na maioria dos casos é possível identificar quem é negro e quem não é, tanto que há discriminação. Ou seja, crescemos ouvindo que somos iguais, mas o mundo nos diz que somos diferentes de uma forma bem negativa.
Como ninguém gosta de ser associado a coisa ruim, é natural que surjam jeitinhos de tentar minimizar a forma negativa como somos percebidos. É aí que entram as tão pervesas estratégias de branqueamento. Desta forma, muito negro acaba virando moreno, moreninho, cabo-verde e por aí vai. Quando perguntei quem dentre eles se considerava negro, um número surpreendente de negros não levantou a mão. É sem dúvida nenhuma uma pena que nossa educação social ainda não tenha encontrado modos de fortalecer a identidade racial de crianças e adolescentes para que ninguém precise se envergonhar de ser quem é.
2. Auto rejeição
Tanto nas cartas quanto no encontro, os jovens relataram suas experiências chocantes com o racismo. Aquelxs meninxs, entre 16 e 24 anos, já foram seguidos por seguranças de loja e shopping centers, negadxs atendimento em loja, ignoradxs quando tentavam obter algum serviço, abusadxs verbalmente com palavras tão duras que eu me recuso a repetir aqui e humilhadxs de diversas outras formas diferentes, antes mesmo de se tornarem adultos no sentido pleno da palavra e da experiência. Não precisa ser nenhum gênio para entender quantos danos isso pode causar ao emocional e psicológico de um ser humano que cresce tendo de lidar com isso.
Da mesma forma, dá pra entender porque a indústria do alisamento/relaxamento de cabelos movimenta milhões em qualquer lugar do mundo. Tem mães por aí, que com a intenção nobre de proteger e cuidar, ficam contando os dias até finalmente poderem começar a relaxar os cabelos das filhas. E assim, ao invés de aprender a nos amarmos e aceitarmos como somos, acabamos por internalizar a idéia de que nosso cabelo é “ruim” e que precisa ser domado. Como se isso já não fosse suficientemente triste, constatei que muitos daqueles jovens negros consideram as palavras “negro” e “preto” xingamentos. Que triste crescer em uma sociedade que te ensina a rejeitar até mesmo os termos que definem sua identidade.
3. A negação do problema
Uma das formas mais maquiavélicas de garantir a perpetuação do racismo é negar que ele existe. Esta é uma estratégia cruel porque cega toda a sociedade para o problema e torna o seu combate tarefa impossível. Afinal de contas, como solucionar um problema que não existe? O mais lamentável é perceber que essa armadilha bem montada pega qualquer um, até mesmo nós, os negros. Fiquei comovida ao ouvir um menino dizer que ele sempre achou que nunca tinha sido alvo de racismo, até darem início às discussões sobre o tema em sala. A partir daí ele começou a relembrar situações do passado e pôde constatar que já tinha sido discriminado sim, inúmeras vezes.
O encontro com os educadores e jovens desse instituto foi uma experiência riquíssima em minha vida. Recebi muito carinho e tive a oportunidade de mais uma vez confirmar o quanto é importante despertar a atenção das pessoas para questões sociais e de identidade o quanto antes. É fundamental estimular as crianças desde bem cedo a se amarem e se aceitarem exatamente como são, e a nunca duvidarem de sua importância e do seu valor no mundo. Também é importante estimular o quanto antes o interesse em conhecer a própria história para melhor entender sua realidade atual. A pessoa que cresce sendo incentivada dessa forma, muito provavelmente se tornará um cidadão seguro, consciente de sua importância e sensível para as questões e os dilemas de outros seres humanos. E não é assim que se forma uma sociedade verdadeiramente igualitária?
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