Por Cidinha da Silva para as Blogueiras Negras
Alcione foi quem me apresentou o Maranhão que aprendi a amar. Todo mundo canta a sua terra / eu também vou cantar a minha / modéstia à parte, seu moço / minha terra é uma belezinha… Este João do Vale também chegou a mim pela voz dela, ainda criança. Carcará e outras canções de João que narravam a luta pela terra e pela liberdade eu só conheceria na adolescência.
A cantora que nos primeiros anos de carreira exalava alegria esfuziante, alegria de cantar, de interpretar, de fazer o que gostava, de ser reconhecida, gravou no primeiro disco uma canção de Gil que me marcaria para sempre, Entre a sola e o salto. Vê por aquela janela /Entre a sola e o salto do sapato alto dela / Vê por ali, pelo vão / Entre a sola do sapato alto dela e o chão. Eu, menina que gostava de poesia, abraçava os joelhos, ouvia a música e imaginava uma história de amor que se passava entre a sola do sapato de salto alto da passista e o chão. Ê quanto amor no teto embaixo do sapato dela / no espaço embaixo do sapato dela / na tenda embaixo do sapato dela.
Entre a sola e o salto é tão definitiva em minha vida que eu queria escrever algo que se aproximasse da poesia da canção e um dia, finalmente, consegui encerrar um crônica assim: quando era pequena, me intrigava a figura do Zé Ninguém-sabe. Um sapateiro, daqueles de lanterna na testa para trabalhar com pouca iluminação. Viúvo, não tinha filhos. Pouco falava, nunca sorria. Só trabalhava. No carnaval virava o Zé Remeleixo, o homem guardado entre a pancada do martelo e o prego dos sapatos.
Alcione que poderia cantar tudo com aquela voz portentosa escolheu emprestá-la ao samba e nos últimos anos colocou-a a serviço dos corações românticos, apaixonados e/ou sofredores e sua influência no público e em outras cantoras cresce.
Joãozinho Trinta foi outro maranhense ilustre que povoou minha infância e me acompanhou por muitos anos com sua alegria e criatividade, brilho, irreverência, gana pela vitória, amor pelo samba e pelo povo, perseverança depois da isquemia. São Luís me deu também o Reggae da Jamaica brasileira, que se pretende Atenas e persegue os regueiros porque são garis, trabalhadoras domésticas, lavadores de carro, toda a gente negra de pouca grana que dança suada, agarradinha, minha gente.
Na urbe paulistana conheci o Maranhão de Cururupu, reinventado no Morro do Querosene por Tião Carvalho e pelas Caixeiras do Divino, por Ana Maria Carvalho, compositora de fina pena: Eu já falei com os olhos / que te amo e você não me ouviu / Eu já falei com as mãos / que te quero e você não sentiu / Eu já fui até a Lua pra tentar te convencer / e acabei conquistando a Lua / Só não conquistei você.
Foi em São Paulo também que conheci Rita Benneditto e seus cantos sagrados afro-pop-ameríndios. O louvor à Jurema e as risadas da Pomba Gira sempre se misturam (e se completam) na minha cabeça. Tecnomacumba é, a meu ver, um disco corajoso, totalmente orientado pela espiritualidade, como Segredos Vegetais, do mineiro Dércio Marques.
São todos maranhenses amados, mas aquele que me deixa mesmo com o coração na mão é João do Vale. Um canto ancestral, uma voz que emana do centro da terra, das terras de preto, pelas quais os pretos quilombolas lutam como panteras negras. Há uma história de João que me faz chorar toda vez que ouço: ele não foi aceito em uma escola porque vendia comida na rua e de outra, posterior, obrigaram-no a sair porque uma criança branca precisava estudar e não havia vaga para ela. Choro mas minha compreensão aumenta e me torno complacente com os pretos mais antigos que em algum momento da vida foram tutelados por artistas e mecenas brancos e urbanos, metidos a bonzinhos, que os receberam em casa, abriram algumas portas de teatros, deram comida quando sua arte não lhes garantia o que comer. Silencio e compreendo.
De outro lado, me alegro com os negros nordestinos de diferentes gerações que venceram por eles mesmos: Luiz Gonzaga, Milton Santos, Naná Vasconcelos, Emanoel Araújo, Gilberto Gil, Djavan, Chico César, todos se estabeleceram, correram trecho e se tornaram reis, no Sudeste e no mundo, sem tutela de padrinhos.
E, de um jeito ou de outro, como nos versos lindos e proféticos do João, nós chegaremos lá e, se não chegarmos, chegarão os que nascerão de nós: Ê meu irmão / Eu vim aqui só pra lembrar / Que ninguém vai poder nesta vida vencer sem lutar / Pois, a vitória é uma semente semeada no chão! / É uma semente semeada no chão. / Assim espera a chuva pra ela poder nascer / E a vitória e a coragem de esquecer de morrer! Eu chego lá / queira ou não queria eu chego lá / Se não chegar a ver, vai nascer de mim quem vem pra ver!