Logo nos primeiros dias do ano, um anúncio do site de compra e venda Mercado Livre chama atenção pelo contrassenso do produto à venda: negras e negros “com diversas utilidades” como faxineiras(os), garis e seguranças de boate, oferecidos à R$1,00. Para além da violência do racismo contida na comparação de pessoas com mercadorias, fica evidente a naturalização da divisão racial do trabalho em que corpos negros conformam corpos úteis, funcionais e aptos às atividades braçais. É necessário ir além das aparências na afirmação de que o lugar de subalternidade ocupado pela população negra e, principalmente pelas mulheres negras em nossa sociedade é resultado do abandono a que foram relegadas(os) as(os) recém-libertas(os) após a abolição de 1888. É a manutenção cotidiana dos valores racistas e as práticas discriminatórias de instituições públicas e privadas que tornam a carne negra a mais barata do mercado.
De acordo com dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) de 2013 sobre a inserção de negras(os) nos mercados de trabalhos metropolitanos de Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador, São Paulo e Distrito Federal, observou-se maior participação de mulheres negras ocupadas no setor de serviços (70,6%), sendo que, desse total, 19,2% correspondem aos serviços domésticos. Embora haja um peso relativo dos serviços domésticos para a ocupação das mulheres negras, a expansão do setor terciário ou de serviços absorveu grande parte desse contingente populacional. Essa expansão está relacionada ao crescimento da oferta de trabalho terceirizado ou subcontratado que, por sua vez, consiste na transferência de execução de serviços de uma empresa para outra com objetivo de lucro. No Brasil, o processo de terceirização ganhou impulso com a reestruturação produtiva nos anos 1990, visando à adequação da economia nacional aos intentos neoliberais. A introdução de mudanças organizacionais e as inovações tecnológicas forjaram formas desregulamentadas de trabalho.
Como prática consolidada, a terceirização é um instrumento de precarização das relações de trabalho. Nessa modalidade de contratação não há vínculo empregatício entre a(o) trabalhadora(or) terceirizada(o) e a empresa em que trabalha. Como estratégia para diminuição dos custos da força de trabalho, a terceirização põe em risco os direitos conquistados pela classe trabalhadora e as garantias previstas na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, com a redução de salários e benefícios, elevação do nível de rotatividade no emprego, extensa jornada de trabalho, inadimplência das verbas indenizatórias, fragilidade da organização sindical e aumento do risco de acidentes de trabalho. Além disso, as(os) trabalhadoras(es) terceirizadas(os) são discriminadas(os) no ambiente de trabalho, pois suas atividades são consideradas de menor prestígio.
Não há regulamentação da prática da terceirização no Brasil, o Enunciado nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho – TST é o único instrumento legal sobre o tema. Ele determina que a empresa tomadora contrate prestação de serviços e não mão de obra. A empresa contratada presta serviço em atividades consideradas de apoio: vigilância, manutenção, preparação e fornecimento de alimentação, transporte e conservação e limpeza. No setor público, o Decreto-Lei nº 200/67 e a Lei nº 8.666/03 (Lei de Licitações e Contratos) são os dispositivos jurídicos que determinam quais são as atividades terceirizáveis e quais são as modalidades de terceirização. No entanto, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que pretende regulamentar a prática da terceirização, o PL 4.330/04.
Estatísticas sobre terceirização no setor de serviços são escassas. A despeito do crescimento desse setor, em que as mulheres negras estão sobrerrepresentadas, sabe-se que não significou melhoria das suas condições de vida. Concentradas na base da pirâmide social brasileira, as trabalhadoras negras correspondem ao contingente em maior posição de desvantagem dentro da classe trabalhadora. A discriminação racial e de gênero implica na segmentação das ocupações no mercado de trabalho urbano conformando as desigualdades sociais. Por tudo isso, é preciso aprofundar o debate sobre a legitimidade de uma prática que flexibiliza os contratos de trabalho ao mesmo tempo que reproduz os valores patriarcais-racistas que se desdobram em superexploração da força de trabalho de mulheres outrora estigmatizadas.