O incômodo que me aflige é altamente corrosivo.
A televisão brasileira e seus dramaturgos estão redondamente enganados se pensam que estão cumprindo seu papel com as representações lésbicas que tem feito.
Não consigo me enxergar em Clara ou Marina (novela Em Família). ‘Clanessa’ (pseudocasal lésbico ex-BBB 2014) não me representam. E muito menos Nico e Felix (novela Amor á Vida) me retratam.
Minha pele é preta. Meus cabelos são crespos. Meu corpo, de pouco mais de um metro e meio de altura, não sabe o que é vestir manequim 36 há muito tempo. Minha conta bancária? Ah essa dispensa comentários, afinal não estou aqui para falar sobre uma tragédia.
As lésbicas brancas, esbeltas e financeiramente abastadas que a Globo mostra não me representam. É apenas mais uma bandeira veladamente racista hasteada. Uma higienização tão sórdida quanto às várias outras que a mídia realiza para satisfazer a sociedade brasileira. Mais uma vez, se vê a exclusão de mulheres duplamente rechaçadas pela sociedade: lésbicas negras.
O espaço que tem restado às representações lésbicas negras, feitas de maneira extremamente vulgar, é em programas de “humor” onde os preconceitos da sociedade usam nariz de palhaço, como na série Pé na Cova, onde Tamanco (Martin’alia), lésbica negra, é frequentemente alvo de comentários pejorativos, é chamada/caracterizada por meio de adjetivos que a desvalorizam. Além disso, representa um estereótipo de lésbica que restringe e rotula esse “grupo” tão diverso de mulheres – que fique bem claro que não estou querendo menosprezar as lésbicas que curtem se vestir com roupas ditas “masculinas”, afinal também são lindas e cada um sabe como se sente bem. O que quero ressaltar é que a generalização muitas vezes beira uma imagem caricata só fomenta preconceitos. A série é mais uma mostra de como grande parte do do humor brasileiro só sabe fazer “graça” atacando grupos já oprimidos e perseguidos ao longo da História.
Outra imagem que a TV gosta de exibir nas raras aparições de negras lésbicas é a objeto para fantasia sexual masculina: a negra jovem, corpo atlético, roupas que mostram (e muito) suas formas corporais, como a líder de torcida Santana (Naya Rivera), de Glee – série exibida na Globo nas madrugadas de quinta para sexta-feira, há uns dois anos atrás (não sei ao certo até quando passou, era nessa época que eu assistia). A personagem, uma das três lideres de torcida mais famosas do colégio, embora tenha um histórico de relacionamentos heterossexuais, a partir da terceira temporada entra revela-se lésbica e assume um namoro com sua melhor amiga Brittany, (relacionamento que já li por aí descrito como “amizade com benefícios”. Aff!).
Apesar de retratar uma adolescente é várias vezes retratada tendenciosamente ao erotismo e fetiches. A personagem apresenta ao longo da trama, uma mentalidade um tanto conturbada quando a sexualidade: muitas vezes agindo com desrespeito, menosprezando as pessoas com quem se relaciona (na cama e fora dela). É a gostosona encrenqueira. Tem uma personalidade forte, mas que pode ser alvo de interpretações pejorativas – o que facilmente ocorre quando se trata de personagens homossexuais, já que nossa “existência” é vista como uma espécie de erro, de mal, perante boa parte da sociedade.
Estou farta de ligar a TV e me sentir invisível. Quero ver lésbicas negras retratadas com a mesma delicadeza, beleza que pude ver entre Nico (Thiago Fragoso) e Félix (Mateus Solano), em Amor à Vida. Quero ver mais personagens como Carolyn (Aisha Hinds) de Under the dome, cuja primeira temporada foi exibida na Globo até o julho deste ano: lésbica negra, em um relacionamento maduro bem resolvido com Alice (Samanths Mathis), com quem tem uma filha.
Quando olho para o arco-íris da bandeira gay, lágrimas vermelhas brotam do meu coração, pelo monocromático branco que tem predominado o restrito lugar ao sol para as lésbicas. Sinto falta de ver lésbicas negras nas quais eu possa enxergar a mim e minha namorada e a família que sonhamos em formar juntas. Meu desejo por representatividade não visa simplesmente uma vontade de nutrir minha autoestima. Não! Trata se de educar as pessoas, mostrar lésbicas negras (e as demais coloridas) na sua essência como pessoas, como cidadãs, como seres humanos dotados de suas virtudes e mazelas como qualquer outra, independente de sua sexualidade.
Veja bem: como PESSOA, SER HUMANO e não como OBJETO ou ser inferior. A TV brasileira, assim como as demais mídias, nos devem (e muito) representações de destaque e respeito, o que é muito importante, visto que estes veículos tanto refletem a sociedade e suas convicções, quanto moldam a mentalidade das massas, que ainda devido ao fato de uma educação limitada e um tanto retrograda, machista, preconceituosa e cheia de vistas grossas às medidas é repleta de atos de lesbofobia e tantos outros cânceres de nossa sociedade que segrega, oprime dia após dia o que julga erroneamente ser inadequado.
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Esse texto faz parte da Blogagem Coletiva pelo Dia da Visibilidade Lésbica e Bissexual, convocada pelo Coletivo Audre Lorde.