Estamos vivendo um momento de intenso questionamento da imagem/papel atribuído à mulher negra nos últimos dias. Viramos notícia em alguns sites e talvez nossos posicionamentos pareçam inéditos. De onde saíram essas mulheres que estão a incomodar? Por que ficam procurando problemas onde não existem? Quem são essas “nega” que deveriam se ocupar com coisas mais importantes que o discurso da mídia?
Darei conta dessas questões ao final deste texto, mas antes me permitam tratar de alguns temas a partir da contribuição da intelectual Patricia Hill Collins.
A referida autora – negra e feminista – afirma em um dos capítulos da obra Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness, and the Politics of Empowerment¹ que a resistência das mulheres negras, na verdade, sua sobrevivência num contexto de opressão de gênero e raça só foi possível graças à familiarização com a linguagem e modos do opressor e da elaboração de um ponto de vista autodefinido.
Explico: diante daquilo que a autora chama de “imagens controladoras” – tais como a repetição de estereótipos que nos animalizam, nos objetificam, tais como a ideia da “matrona” (no Brasil poderíamos remeter a imagem da Tia Anastácia) ou da “mulata sensual” (Globeleza) – e da nossa própria experiência cotidiana na família e no trabalho, nós captamos as contradições de tais imagens, e, de modo anônimo, silencioso ou organizado elaboramos uma outra imagem de nós mesmas.
Collins cita exemplos de pesquisas com empregadas domésticas na qual se percebia um “notável senso de autovalor” que essas mulheres possuíam. Eu nem preciso recorrer aos resultados da pesquisa citada pela autora. Sem muito esforço conseguimos nos lembrar de falas irônicas, engraçadas que ouvimos no nosso cotidiano de nossas avós, tias ou mães que já exerceram (ou exercem) serviços domésticos, das conversas entre trabalhadoras dentro de um ônibus com destino ao centro pela manhã ou na volta para a periferia à noite. O modo cômico como se referem às “madames”, como ignoram seus caprichos, e como se referem a si mesmas como “nada bobas ou ingênuas” tornam mesmo evidentes que nossa imagem de nós mesmas nada tem a ver com àquelas imagens presentes quase que hegemonicamente em nossa sociedade.
Digo quase que hegemonicamente porque para Collins as “imagens controladoras” de modo muito improvável se fazem presentes em espaços sociais onde nós mulheres negras possamos falar livremente. Esses lugares são denominados pela autora como “espaços seguros”. No contexto norte-americano Collins identifica pelo menos três deles: 1) o relacionamento de mulheres negras entre si, 2) a música (principalmente o blues) e 3) a escrita.
Esses espaços são seguros porque são exclusivos, estão longe dos olhos dos opressores e permitem que afirmemos entre nós, nossa própria humanidade, nosso direito de existir.
No que se refere ao relacionamento de mulheres negras entre si, Collins cita uma bonita afirmação da intelectual Evelynn Hammonds: “Eu sempre rio com mulheres negras. Acho que o nosso humor vem de um reconhecimento compartilhado de quem nós somos nesse mundo.” Ao tratar desse espaço a autora menciona a amizade entre mulheres negras e o relacionamento entre mães e filhas e por meio de exemplos mostra como tais relacionamentos podem nos servir de apoio e renovação.
No contexto norte-americano, o blues também foi um espaço seguro. Por meio da voz, mulheres negras trabalhadoras, não letradas puderam exprimir seu ponto de vista, expressar suas autodefinições. Collins cita muitos exemplos por meio da descrição das letras ou interpretações de Ma Rainey, Bessie Smith, Billie Holiday, Aretha Franklin e Nina Simone². Para que fiquemos apenas com um exemplo, cito a análise que a autora faz da letra de Blues Four Women de Nina Simone³:
Simone canta sobre três mulheres Negras cujas experiências tipificam imagens controladoras: Tia Sarah, a mula, cujas costas estão curvadas por uma vida de trabalho duro; Sweet Thing, a prostituta Negra que pertencerá a quem tiver dinheiro para comprá-la; e Saphronia, a mulata cuja mãe Negra foi estuprada tarde da noite. Simone explora a objetificação das mulheres Negras como o Outro ao invocar a dor que essas três mulheres realmente sentem. Mas Peaches, a quarta mulher, é uma figura especialmente poderosa porque ela está brava. “Eu ando terrivelmente amarga esses dias”, Peaches grita, “porque meus pais eram escravos.” Essas palavras e os sentimentos que elas evocam demonstram sua crescente conscientização e a autodefinição da situação que ela encontrou. Elas não oferecem aos ouvintes tristeza ou remorso, mas uma raiva que leva à ação.
Por fim, tem-se a escrita. Collins cita que este tem sido um importante recurso para que mulheres negras possam adquirir voz. Por meio de histórias, poesia e até mesmo por meio da escrita de uma carta – a autora remete à personagem Celie, de “A Cor Púrpura” de Alice Walker, que escrevia cartas para Deus quando ninguém a podia ouvir – nós mulheres negras quebramos o silêncio e o transformamos em linguagem e ação como afirmaria Audre Lorde (1984)*.
Para além da autodefinição, tais espaços nos ofereceriam possibilidades reais de autovalorização e respeito, autoconfiança e independência, empoderamento pessoal e mudança (por meio da releitura da realidade).
Bom, mais porque escrevo sobre isso? Por que estou falando sobre resistência, sobrevivência, espaços seguros e poder de autodefinição?
Falo de tais temas a partir da contribuição de uma intelectual negra para voltar às perguntas do início: não há ineditismo nas nossas ações, não é porque não temos o que fazer ou com que nos preocupar que nos incomodamos. Não “saímos” de lugar nenhum. Estamos nós, nos lugares de sempre fazendo o que sempre fizemos.
Se formos nos limitar aos “espaços seguros” descritos por Collins, também no Brasil esses foram e são nosso relacionamento uma com as outras (a família, as amigas, as companheiras, e atualmente, grupos na internet), a música (por exemplo, o samba cantado e escrito por mulheres negras)**; as colunas de Maria de Lurdes do Nascimento no Jornal O Quilombo***, a poesia de Carolina de Jesus e de muitas pretas periféricas nos saraus**** e de pretas de diversas classes sociais na academia*. Mas há muitos outros “espaços seguros” a serem descobertos.
A verdade é que nunca estivemos em silêncio.
E para quem pergunta “quem são essas ‘nega’”? Respondo: somos a continuidade, a resistência, a sobrevivência e sempre estivemos aqui. Talvez agora com uma importante diferença: não estamos mais na condição de quem assiste a reprodução das “imagens controladoras”. Nos cansamos delas. Não as toleramos mais. Sobrevivemos até aqui fazendo esforços para nos auto-definir e conseguimos, mas não queremos mais que assim seja para nossas irmãs mais novas, para aquelas que virão.
REFERÊNCIAS
¹Capítulo 5 The Power of Self-Definition
²Quando da realização do Seminário “Maria de Lurdes do Nascimento” – Introdução ao pensamento feminista no Núcleo de Direito e Democracia do Cebrap organizamos a coletânea das musicas citadas por Collins e disponibilizamos no Youtube. É possível ouvi-las nesse link:
http://www.youtube.com/watch?v=cr6xjWEYGSs&feature=autoplay&list=PLD43FC1BC907584BB&playnext=2
³Para ouvir acessar: https://www.youtube.com/watch?v=Nf9Bj1CXPH8
*The Transformation of Silence into Language and Action in Sister Outsider (1984)
**Ver estudo desenvolvido pela ativista e intelectual negra Jurema Werneck: “O samba segundo as ialodês: Mulheres negras e a cultura midiática.”
***Sobre Maria de Lurdes do Nascimento conferir estudo da intelectual negra Joselina da Silva “Vozes soantes no Rio de Janeiro, São Paulo e Florianópolis: mulheres negras no pós 1945.
*Para uma primeira aproximação com esse universo bastante vasto de produção ver “Pretextos de Mulheres Negras” organizado pelas mulheres negras Carmem Faustino e Elizandra Souza.
**Para me deter somente a algumas das intelectuais negras de uma geração anterior à nossa: Beatriz do Nascimento, Lélia Gonzalez, Thereza Santos, Sueli Carneiro, Cida Bento, Helena Theodoro, Denise Botelho, Eliane Cavalleiro, Marcia Lima, Joselina da Silva, Gislene Aparecida dos Santos, Iris Amâncio, Vilma Reis, Matilde Ribeiro, Kassandra Muniz.
Imagem destacada – Vanessa Aragão. Graduanda em Ciências sociais.Vitória da Conquista. em Boicote Nacional ao programa “Sexo e as negas” da Rede Globo.