Faz tempo que não escrevo pelas terras da internet e esse artigo é um daqueles que saem cuspidos, de uma sentada só, quando a motivação da escrita é tão revoltante que, enquanto o argumento não sai inteiro, não acaba a inquietação.
Eu escrevo aqui do alto dos meus 27 anos, jornalista com uma graduação concluída com louvor, endereço fixo, telefone conhecido e público, registro profissional regular e algumas dúzias de seguidores pelas redes sociais. Só que o que me faz escrever não são meus quatro anos de estudo em comunicação social, mas os meus 27 anos de vida na minha pele de mulher preta e periférica, moradora de uma grande, cruel e desigual metrópole brasileira, país racista e machista por seus anos de história desigual.
Qualquer outra preta poderia dizer o que estou dizendo agora, daquelas com pós-doutorado ou das analfabetas. Das públicas ou das anônimas.
Charô Nunes sou eu. Charô Nunes é uma mulher que sempre traduz com seus escritos o que milhares de nós passam todos os dias, mas nem sempre têm espaço, voz ou visibilidade para contar. Charô é uma mulher corajosa, amorosa, generosa, que eu tive o PRIVILÉGIO de conhecer. Ela é de perto, no analógico, toda essa força que vemos no digital. Mas é mais que isso. É amor, é doçura, é conhecimento, é risadas, um pouco de timidez e muito encantamento.
Ela é sua família e é por essa família, pela integridade daqueles que não escolheram junto com ela essa vida de irreverência e questionamento, que ela não publica por aí sua vida pessoal. Porque ela sabe, como estamos tendo a prova hoje, que quando o poder é questionado e provocado, se ira, esbraveja, não aceita a pedrada de Davi e vem com seu trator impiedoso sobre todos que estiverem em seu caminho.
Esse moço, como todos aqueles que são questionados de seus lugares de privilégio, não aceitam que uma preta qualquer os aponte os dedos em riste. Se apoiam em academicismos, como se o conhecimento só existisse nas cátedras por aí.
Saia dessa, meu caro! O conhecimento é antes oralidade, ancestralidade, empirismo, vivência, experiência, depoimento, para depois ser apropriado pela academia e seu afastamento anestesiado. Não precisamos de um doutor de qualquer coisa para validar o que dizemos.
Não preciso dar carteirada para saber o que significa racismo e machismo. Ou antes, preciso sim, e ninguém mais gabaritado do que eu para dizer o que é racismo e o que é machismo, uma mulher preta, que vive isso na pele ostensivamente TODOS OS DIAS. Porque não há um dia na minha vida em que eu não seja mulher, não há um dia na minha vida em que eu não seja preta. Assim como Charô.
Eu sou ela, ela sou eu. Uma mulher com a vida entregue a questionar, apontar os dedos em riste e gritar o que está errado. A exigir a revisão de privilégios. A provocar os pensamentos amarrados, engessados, que não duvidam, não perguntam, apenas aceitam.
A leitura desse artigo que nos foi publicado apenas demonstra o desespero desse senhor ao perder por entre os dedos todo um coletivo de mulheres insubmissas que não aceitam os lugares subalternos de sempre. À medida que tenta reduzir a insatisfação dessas mulheres a uma delas e demonizá-la e não obtém sucesso, se irrita e provoca com uma retórica simplória e vazia, exatamente da forma que acusa nossa Charô de fazer.
Charô tem embasamento sim, muito. Na minha fala, na minha vida, na existência das minhas irmãs pretas todas, se esgueirando pelos becos da vida, sobrevivendo e resistindo. E naquilo que você não conhece, porque está sentado aí no seu privilégio masculino querendo nos dizer qual a forma correta de ser mulher e de ser preta.
Te devolvo a pergunta: quem é você? Essa mulher é formadora de opinião porque coloca alma no que faz, porque sabe do que está falando e não precisa de um diploma para isso, porque essa verdade habita sua vida todos os dias.