No último dia 14, celebramos o Dia da Poesia.
Não podemos deixar passar em branco em tempos de tanta dureza as palavras leves e negras de negras poetizas, negras mulheres que escrevem e transformam palavras em melodias, significantes em sons. Somos muitas, tantas que não caberiam todas nesse texto, mas as que aqui serão mencionadas com certeza tem em sua escrita elementos de muitas, das que escrevem e escreveram.
Com a licença das que vieram primeiro, abriremos com Maria Carolina de Jesus, a escritora que também foi poetiza e nos presenteou com inúmeras poesias, algumas musicadas e tantas outras esquecidas. Que Maria esteja nas nossas letras, registrada nas nossas memórias e sentimentos coletivos.
Muitas fugiam ao me ver
Muitas fugiam ao me ver
Pensando que eu não percebia
Outras pediam pra ler
Os versos que eu escrevia
Era papel que eu catava
Para custear o meu viver
E no lixo eu encontrava livros para ler
Quantas coisas eu quiz fazer
Fui tolhida pelo preconceito
Se eu extinguir quero renascer
Num país que predomina o preto
Adeus! Adeus, eu vou morrer!
E deixo esses versos ao meu país
Se é que temos o direito de renascer
Quero um lugar, onde o preto é feliz
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Seu nome é Cláudia Silva.
Cujo nome preto calaram com um tiro,
Cuja pele negra esfolaram no asfalto
E cuja toda sorte desfizeram sem acaso.
Sem acaso?
Não é por acaso que um corpo negro cai.
Cai sem ser infarto ou doença de satanás,
Cai como um pássaro que a criança atira,
Mas com menos lágrimas, velas e missas.
Cai na ordem do dia de “combater” o tráfico,
Ou cai na estatística de mais um assalto.
Cai porque é preto que cai todo dia.
Mas ocorre que nessas voltas que o mundo dá,
O nome que deveria cair no esquecimento,
Virou bandeira para o movimento.
O sangue arrancado do seu sofrimento,
Exalou coragem de empoderamento
E libertou do cárcere o embrutecimento.
Cláudia da Silva Ferreira,
Seu Silva é da minha mãe também,
Sua sorte poderia ser também.
A história mostra
Do que dela se retém
Que quando o preto se organiza não tem pra ninguém.
Gabriela Barcelar
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Eu sou negra! morena não..
Morena e parda são raças que não me representam, nem a minha história.
ah..e meu cabelo é crespo
Ruim ele não é por que não cometeu nenhum crime, ele só sofre crimes apenas
Ruim não me representa, bagunçado também não
Não tenho vergonha de ser negra
Não deveriam sentir vergonha por eu ser negra
Ser negra não é só problema meu
Não há problema algum em ser negra
Não sou maior e nem menor por ser negra
e só
Não peçam que eu seja parda, nada contra as pardas
Não me peçam que eu seja morena, nada contra as morenas
Não me obriguem a ser quem não sou, por que eu sou e sempre vou ser negra!
Agradecida
Raquel Souza
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Não é questão de pigmentação
Morena, mulata, cravo e canela,
café-com-leite, da cor do pecado, bronzeada, dourada, parda,
mestiça…
… Senhor!
Não tem uma definição um pouco mais precisa?
Não vem com esse papo de que somos todos iguais, todos seres humanos independente da
raça e da cor
Isso é conversa pra apagar minhas raízes
Pra não dar a minha etnia o seu devido valor
Todos são iguais, mas o cabelo bonito é o liso
O olho bonito é o verde, azul
A religião NORMAL é a cristã
Ridicularizam minha crença em Obá, Oxum, Iansã
E querem que eu pense que todos devem ser olhados da mesma forma independente da raça
e da cor?
Passei muito tempo aceitando o “morena” como classificação
Mas procurei meu passado
Deixei a química, o alisamento de lado
Olhei pra minha classe social
Comecei a perceber que aquelas brincadeiras na escola era discriminação racial
Que queriam me embranquecer
Apagar os últimos vestígios africanos que sobraram no meu corpo, fruto de uma relação inter-
racial
Apagar os vestígios que convém apagar
Porque das minhas curvas, minhas nádegas, meus quadris, meus seios… Homem branco
ainda quer desfrutar!
Meu corpo miscigenado é a carne mais consumida sexualmente no mercado
É a imagem da mulher negra ainda explorada, fetichizada, hiperssexualizada
E com a pele mais clara
Mais tolerável, mais fácil de aceitar
A imagem que eu vejo refletida no espelho
É a representação estética perfeita dessa sociedade racista
Que foi miscigenada através do estupro da mulher preta
Ah, isso não se fala na TV!
E através de uma ideologia eurocêntrica, elitista
Tentaram embranquecer o povo afro
Apagar, aniquilar, esquecer!
Me roubaram a melanina!
Minha pele é clara, mas restaram alguns traços
Traços estes que por mim serão preservados, potencializados, valorizados
Tentaram me embranquecer, mas não é tão fácil assim
Negro vive, negro ama, negro grita dentro de mim!
Muitos irmãos olham pra minha cor e não me consideram preta
Também pudera!
Ter pele escura no mundão é outra treta!
Mas branco NENHUM me considera branca
Pro branco eu sou morena, mulata, parda
Mas igual a ele eu não sou
Sou qualquer patifaria que inventaram pra esquecer da minha cor
O IBGE me classifica como parda
Ora senhor, pardo que eu saiba… é papel.
Não apague minha identidade, não esquecerei o passado e o presente cruel
Não esquecerei a opressão violenta que embranquece e esquece da comunidade negra
Para de falar dessa porra de democracia racial!
Você sabe senhor, a gente não é igual!
Pele clara
Cabelo crespo
Minha história ninguém mais apaga!
Acha que essa crise de identidade
Essa sensação de ser um ser indefinido
Um animal híbrido não é discriminação racial?
Brancos não me veem como branca
Mas querem meu corpo em suas camas
Isso é normal?
Mas eu não abaixo a cabeça mais não
Aprendi com Steve Biko que ser negro não é questão de pigmentação
Pra todos os pretos e pretas eu digo: irmãos, preta eu também sou!
Pros brancos, recado:
Essa falsa miscigenação como tentativa de apagar meus traços, minha história…
FRACASSOU!
Nem parda, nem morena, nem mulata!
Mulher preta
Tô na luta pra combater esse embranquecimento físico e cultural
Na luta pra combater todas essas crises de identidade que plantaram nas nossas mentes
Eles querem nos confundir, nos dividir
Falar que discriminação é coisa da cabeça da gente
Que é difícil saber quem realmente é negro no Brasil
Mas o racismo sabe quem é negro
A polícia sabe, o bairro rico, o cano do fuzil
Eu to nessa luta!
Só não dá pra ficar sozinha, temos que lutar juntos
Fazer a resistência.
Eu sou negra, irmãos!
Disso eu já tenho consciência.
Carina Rocha
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Sonhei
Sonhei que estava morta
Vi um corpo no caixão
Em vez de flores eram Iivros
Que estavam nas minhas mãos
Sonhei que estava estendida
No cimo de uma mesa
Vi o meu corpo sem vida
Entre quatro velas acesas
Ao lado o padre rezava
Comoveu-me a sua oração
Ao bom Deus ele implorava
Para dar-me a salvação
Suplicava ao Pai Eterno
Para amenizar o meu sofrimento
Não me enviar para o inferno
Que deve ser um tormento
Ele deu-me a extrema-unção
Quanta ternura notei
Quando foi fechar o caixão
Eu sorri… e despertei.
Carolina Maria de Jesus
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Poesias enviadas às Blogueiras Negras. As autoras são:
Gabriela Bacelar – estudante de Ciências Sociais, UFBA. Feminista negra.
Raquel Souza – mulher, negra e livre, Estudante de Terapia ocupacional na unB
Carina Rocha – Negra e integrante do Coletivo Juntas na luta
Imagem destacada: Carolina Maria de Jesus, ilustração de Pedro Sobrinho.
*Trecho da música Minha voz, de Flora Matos.