Vou começar de novo pelo dicionário. Procurando pelo verbete “Arrastar”, encontrei os primeiros significados: v.t. Puxar atrás de si, fazendo deslizar ou roçar pelo chão. Levar, puxar à força. Mover com esforço ou dificuldade. V.i. Ir de rastos, rastejar. V.pr. Fig. Tardar uma solução: a obra arrastava-se há anos. Mas também encontrei: Ferrar, foder com alguém, levar junto pro buraco. Ferrar com alguma coisa.
A Polícia Militar brasileira tá no buraco faz tempo! Dedicada ao controle e à opressão, em 2014 a PM do Rio de Janeiro ferrou com Cláudia Ferreira da Silva. Com sua família, amigxs e com nós, outras mulheres negras, que assistimos Cláudia ser puxada à força, mas sem esforço, nem dificuldade. Ela seria só mais uma jovem, mulher, negra, mãe, trabalhadora e anônima. Mas o racismo institucionalizado não quis que fosse assim e deu à Cláudia uma notoriedade que ela não imaginaria.
Recapitulando. Há um ano, na manhã do dia 17 de março de 2014 o Brasil se deparou com a divulgação de um vídeo mostrando uma mulher negra arrastada por uma viatura da Polícia Militar carioca. O episódio aconteceu na manhã do dia anterior, dia 16, domingo, quando a polícia subiu o morro para duelar com traficantes e blá blá blá. O material foi feito por câmera de celular e na imagem vimos o porta-malas da viatura aberto e o corpo preso ao veículo sendo arrastado. Se a facista tese “bandido bom é bandido morto” fosse eficaz, por que então Cláudia foi assassinada pela PMRJ? Será que foi porque o pacote de pão que ela trazia na mão parecia uma arma de fogo?
As pessoas brincam, mas é sério, muito sério. Em carne preta, a polícia primeiro atira, depois verifica. Apanhamos por tanto tempo que agora somos perigosxs! Somos um risco ao Estado.
Na verdade a PM matou Cláudia três vezes. A mídia veio e arrematou assassinando-a mais uma vez. Cláudia morreu primeiro pela certeira bala do fuzil de um policial lá no Morro da Congonha, depois morreu de novo arrastada pela viatura no asfalto por mais de 200 metros – porque afinal, gente negra anda é no camburão, sim? -, a terceira morte de Cláudia foi a liberação de seus algozes pela corporação militar. E eu arriscaria dizer que deve ter rolado uns bons drinks às custas dessa nossa dor quando os heróis da nação não foram condenados. Condenada foi a Cláudia, quem manda ela sair pra comprar pão e cruzar o caminho da bala, né?
Quando tomei pé do episódio, no dia 18, chorei tanto que nunca tive coragem de ver o vídeo, bastaram as fotos e as manchetes dos noticiários: “mulher arrastada por viatura da PM”. Como se já não bastasse todo o massacre, a mídia novamente nos deu o espaço do “ser ninguém” e tirou a identidade de Cláudia. Mataram-na pela quarta vez! Roubaram-lhe sua essência, furtaram-na um nome e um sobrenome. Tentaram, mais uma vez, sufocar a existência da mulher negra. Mas os mesmos jornais dão nome, voz e protagonismo a pessoas como Ana Carolina Jatobá e Suzane von Richthofen.
Mas insistem nisso porque realmente esquecem que somos sementes. Cláudia jamais será esquecida. Quem decidiu isso fomos nós. Decidimos que Cláudia teria nome, sobrenome e rosto espalhados em nossas mídias, nossos espaços, além de nossas vozes à sua disposição. Em diversas cidades surgiram manifestações por Cláudia, pela internet sua identidade foi alastrada, ocupou e então foram obrigados a recuar e apresentar Cláudia: mulher, negra, 38 anos, casada, mãe, tia, irmã, trabalhadora.
Já bastam as milhares de mulheres negras arrastadas pela escravidão, assassinadas em porões empoeirados ou açoitadas em praças, pelas mesmas ordens que mataram Cláudia. Já bastam as mulheres negras que são achincalhadas diariamente nas favelas, nas mansões, nos hospitais, nas delegacias.
“Trataram ela como um bicho. Nem o pior traficante do mundo deveria ser tratado assim. Quando cheguei no hospital, eles falaram que ela tinha ido para a UTI, mas ela já estava morta. Ela leva um tiro no peito e é arrastada no chão. Como vai sobreviver? Temos quatro filhos, uma de 18 anos, um de 16 e um casal de gêmeos que fará 10 anos no próximo domingo.” (Alexandre Fernandes da Silva, marido de Cláudia).
A cena de Cláudia presa à viatura, com o corpo inerte, sendo arrastado à luz do dia revelou o que muitas pessoas negras passam no silêncio das madrugadas, como aconteceu com Amarildo e DG: sumidos e assassinados, sempre sugerindo que a justificativa é a relação dessas pessoas com o tráfico de drogas. Mas por esse eterno tráfico de corpos negros, ninguém responde. E a confiança na impunidade pelo genocídio negro é tão grande que, mesmo em frente às câmeras de televisão, Andreza Delgado também foi arrastada pelas mãos genocidas da polícia militar brasileira.
A lista de nomes das pessoas negras arrastadas e sumidas não é pequena. Se o Estado fosse ao banco de réus por isso, teríamos que adotar outras medidas de ajuste, pois ao passo que algumas ações afirmativas buscam reconhecer e diminuir a dívida com a população negra, os crimes de genocídio não cessam, porque sempre que vemos a tese “bandido morto” em aplicação, esse bandido tem cor e endereço: é preto e é da favela.
A exposição do corpo de Cláudia sendo arrastado não difere da dissecação do corpo de Saartjie Baartman na Europa dos séculos XVIII e XIX. De Saartjie a ciência francesa tirou tudo, ela quase virou uma lenda, quase deixou de existir. A irresponsabilidade da PM ao “socorrer” Cláudia no porta-malas da viatura quase lhe tira o rosto.
Um ano depois, aqui estamos repetindo o assunto com o mesmo propósito: lembrar de não esquecer! Porque Cláudia também não é uma lenda, nem um mito, nem uma desterritorializada. Cláudia também não veio da “ficção”, não foi inventada. Cláudia está presente em mim diariamente, está presente na Andreia (mãe da Rayza), está presente em dona Maria e na Camila. Cláudia foi arrastada sim, mas sem identidade não, isso nunca permitiremos!
Daqui a dois meses faço 38 anos. Será que meu turbante também será uma arma de fogo aos olhos policialescos?
Imagem destacada: A Paixão de Cláudia. Créditos: Nego Júnior