Capitão do mato: a figura do capitão do mato, apesar de controversa, é uma das mais emblemáticas dentro do contexto de escravidão brasileira. Os capitães do mato eram homens negros alforriados que eram pagos para saírem à procura de outros homens também negros que haviam fugido de sua condição escrava. Encontrados esses homens, eles eram devolvidos aos senhores ou conduzidos a uma cadeia. Em suma: capitães do mato eram homens negros que viviam de delatar outros homens negros a homens brancos.
Preto da casa: Assim eram chamados os negros que, ainda em condição de escravos, recebiam por parte de seu senhor uma “colher de chá”, uma “liberdade” para falar o que pensavam, mas única e exclusivamente porque esses homens (de novo, ainda em condição de escravidão), gratos por receberem algum privilégio de seu senhor (como viver na casa), reproduziam – justamente por isso – o discurso opressor e racista de seu senhor. Esse homem escravizado não se enxerga como tal, não enxerga ou se esqueceu ou ignora sua condição de escravo, vendo-se, na verdade, como parte integrante do sistema escravocrata, como um escravo com benefícios.
Mucama: mulheres negras escravizadas, também chamadas de “escravas de estimação”, que cuidavam ou auxiliavam nas tarefas de casa e cuja função era, também, a de acompanhar as sinhás. Moravam dentro da Casa Grande, e, portanto também poderiam ser identificadas como “pretas da casa”.
O que essas “posições sociais” têm é comum é o fato de existirem em favor e/ou em serviço dos brancos. Entretanto, mais do que posições sociais, essas castas eram verdadeiras tábuas de salvação para homens e mulheres que estavam – a curto ou longo prazo – destinados a toda sorte de violência física. No caso dos capitães do mato, que já não podiam sofrer as violências físicas da escravidão, voltar-se contra outros negros era, de certa forma, negar sua condição de alguém socialmente inferior, ainda que ele fosse liberto, uma vez que ser negro – numa sociedade escravocrata – obviamente era considerado algo ruim. No caso dos pretos da casa, poder falar e se expressar livremente dentro daquele espaço onde brancos detinham o poder, dava-lhe a falsa impressão de que ele estava sendo sujeito de seu discurso, mas desde que esse discurso reproduzisse o discurso de seus senhores e, consequentemente, prejudicasse outros negros escravizados. Por fim, a uma negra escravizada que se tornava mucama era possível desfrutar de algumas facilidades dentro da casa grande, além de também poder de certa forma se expressar – aconselhando, por exemplo, as sinhás – e, talvez na menos pior das vantagens, não ser estuprada por mais homens do que ela, como escrava, estaria sujeita.
Resumindo: ser capitão do mato, mucama ou preto da casa não era uma escolha apenas; era, sim, uma questão de sobrevivência.
Hodiernamente, esses três termos são usados para fazer referência a mulheres negras e homens negros que, na visão particular de algumas pessoas, prestam algum tipo de desserviço à causa negra. Paradoxalmente, são pessoas negras que usam esses termos para se referir a seus iguais, reproduzindo justo o comportamento que eles mesmos recriminam. É o negro reproduzindo opressão contra outro negro: como faziam os capitães do mato e os pretos da casa.
A utilização desses termos para se referir a, ofendendo e xingando, outras pessoas negras não é só contra-produtivo – porque se valem das mesmas armas daqueles que, de fato, se beneficiam de uma guerra entre os negros (como os senhores de escravos beneficiados pelo trabalho do capitão do mato e do preto da casa) – mas é uma violência por si só. No caso específico de mulheres negras, além dessa violência e desonestidade intelectual, chamá-las de mucamas e pretas da casa é violentar, também, as mulheres que – atualmente – exercem funções análogas às funções que exerciam essas mulheres no tempo da escravidão: refiro-me aqui ao trabalho subvalorizado das empregadas domésticas.
Segundo o estudo “O emprego doméstico no Brasil” realizado pelo DIEESE e publicado em agosto de 2013, “o trabalho doméstico no Brasil é, na maioria das vezes, exercido pela mulher negra. Entre 2004 e 2011, a proporção de mulheres negras ocupadas nos serviços domésticos no país cresceu de 56,9% para 61,0% (…) O contingente elevado de mulheres negras no trabalho doméstico é consequência da histórica associação entre este tipo de atividade e a escravidão, em que tal função era majoritariamente delegada às mulheres negras. Atualmente, ainda existem resquícios dessas relações escravagistas no emprego doméstico, havendo, com frequência, preconceito e desrespeito aos direitos humanos e aos direitos fundamentais no trabalho. As relações de trabalho são marcadas, muitas vezes, por relações interpessoais e familiares, descaracterizando o caráter profissional da ocupação. Além disso, uma das principais possibilidades de inserção das mulheres pobres, negras, de baixa escolaridade e sem qualificação profissional, no mercado de trabalho”.
Ou seja, ser a mucama, ser a preta da casa, ou – modernamente falando – ser a empregada doméstica é a realidade de muitas mulheres negras do Brasil: 52,6% das mulheres que exercem essa função são negras. Os motivos são vários e não cabe nesse espaço listar todos. Mas um merece destaque porque enseja outro tipo de acusação que nós, mulheres negras que tiveram condições de exercer outras funções, somos acusadas. À população negra é negada de uma forma outra uma educação de qualidade. Sem escolas com o mínimo de infra-estrutura, fora todas as questões sociais que permeiam o ser negro no Brasil, sem um ensino fundamental e médio de qualidade, a esses negros são reservados os empregos menos valorizados: como o de empregada doméstica. Os que fogem dessa regra, como eu por exemplo, e que ocupam lugares majoritariamente brancos como a Academia, são acusados de academicismo em sua linguagem. O que essas pessoas não percebem é que, seja crítica, seja ironia, esse discurso reproduz o pensamento de que aquele lugar não é lugar para pessoas negras. Não é à toa que espaços como o Preta e Acadêmica se fazem mais do que necessários, pois quando usamos uma linguagem “acadêmica”, as pessoas ainda querem nos fazer sentir como peixes fora d’água. Nada novo se fossem brancos que estivessem se sentindo prejudicados com a inserção de negros numa universidade, mas vindo de homens e mulheres negros? Não há explicação plausível.
Diante de tudo isso, lanço agora uma pergunta: em que instância, um espaço como o Blogueiras Negras dá espaço/reproduz/facilita/incita/defende discursos e atitudes que se assemelhariam a de negros que “traem” outros negros? Como o Blogueiras Negras se mostra como um espaço de mucamas, pretas da casa, capitães do mato – tomados esses termos em seu sentido pejorativo? De que forma é possível um coletivo que dá voz a mulheres negras, que ajuda no processo de empoderamento dessas mesmas mulheres, que é contra o machismo, a homofobia, a lesbofobia, a transfobia e, obviamente, o racismo e tantas outras formas de opressão pode – ao mesmo tempo – estar prestando deliberadamente um serviço aos brancos?
Pois é essa a mais recente acusação que esse espaço está sofrendo. Fomos todas as colaboradoras do Blogueiras Negras chamadas de “mucamas” e “pretas da casa”. A motivação foi o texto da preta Cris Oliveira “Lidando com o racismo”, em que ela nos contempla com SUA EXPERIÊNCIA PESSOAL sobre racismo em terras alemãs. “Certo” e “errado” não são julgamentos que cabem ao relato de uma mulher negra, mesmo porque julgá-lo como “errado” é negar a subjetividade de uma experiência que se vive ou viveu por causa de sua condição de mulher negra. Seja como for, nada em absoluto justifica chamar uma mulher negra que compartilhou de um momento pessoal para ajudar no empoderamento de outras mulheres ser chamada de “mucama”. Se o texto da Cris apresenta problemas, cabe – sempre – o diálogo. Diálogo esse que chegou de fato a acontecer com pessoas que estavam verdadeiramente interessadas em construir estratégias contra o racismo, em vez de usarem seus perfis pessoais para atacar a autora e todo esse coletivo. Cris ainda tem um blog pessoal em que fala também sobre suas experiências na Alemanha.
De mais a mais, como deixa bem claro o manual da Blogueira Negra : “as opiniões expressas em cada texto não refletem necessariamente a de nossa comunidade e da equipe de facilitadoras. O que chamamos de Blogueiras Negras é composto de variadas personalidades, posicionamentos e opiniões e assim deve ser entendido”. Ou seja, ainda que o texto de Cris apresentasse algum ponto com o qual se discordasse, as ideias da autora NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A DE NOSSA COMUNIDADE E DA EQUIPE DE FACILITADORAS. Dessa forma, além de violência gratuita – visto que essa pessoa que se refere a nós como “mucamas” nunca foi atacada por uma mulher ENQUANTO ou EM NOME DO Blogueiras Negras – tratar todo um coletivo por esse termo é desonestidade.
A minha reação pessoal diante dessa violência foi expressar que eu – Gabi Porfírio – tenho vontade de “esfregar a cara dela no asfalto quente da Rio Branco em obras pro BRT”. Não falei isso pra ela no mesmo espaço em que ela expôs suas mágoas com o Blogueiras Negras. Não fui convidada ao debate e minhas duas tentativas com essa pessoa de ajuda em sua desconstrução foram falhas. Assim, eu não tinha mais nada a tratar com ela. Entretanto, me senti à vontade de expressar que se eu pudesse faria com que ela sentisse – fisicamente – a dor que, psicologicamente – ela causou a mim e a esse coletivo. A minha agressão não se realizou, enquanto a dela atingiu em cheio um grupo com mais de 1.300 pessoas, um grupo que conta com o apoio virtual de 210.000 pessoas. De qualquer forma, minha agressão sem dúvida seria desmedida, ainda que tenha sido uma força de expressão para demonstrar minha indignação. Por isso, com o apoio das colaboradoras do Blogueiras Negras, escrevo, assino e finalizo esse texto, esperando que seus compartilhamentos e “curtidas” mostrem a essa moça como uma Blogueira Negra responde a um ataque.
Imagem destacada: Reprodução web.