Não peguei a época dos barracos de madeira, tive a sorte de nascer na alvenaria e isto sempre garantiu um privilégio na favela. Essa casa foi comprada pelo meu pai, na mão de meu avô, branco e racista. Mas era necessário para garantir um dos direitos mais brutais vetados para a população negra no Brasil, o direito à moradia. Não digo nem terra, digo morada mesmo, teto, lugar pra dormir, descansar, chamar de seu. Era no beco do baixinho, na favela da Serra (ainda não consigo nomeá-la como o Estado o fez: Aglomerado; pra mim, sempre foi favela). Era um barraco de grandes proporções, entre a Del Rey e a Chácara, hoje renomeada de Baixada devido às disputas territoriais entre os trabalhadores da revenda de drogas.
Mesmo morando na periferia, eu tinha o privilégio diante de muitas amigas de escola, cujas famílias tinham a obrigação mensal do aluguel. Ainda com realidades tão próximas, era nítida a diferença entre quem conquistou um lugar para ocupar e construir e as pessoas que conseguiram comprar os barracos na mão de outros ocupantes, das que tinham sempre que migrar de barraco em barraco e vivenciavam o medo de sempre estar sem sua moradia, dependentes de um esforço cruel para pagar por mês seu direito de ter um teto pra dormir.
Foi assim que adquirimos uma “casa própria”, sem qualquer registro ou segurança, contrato de boca, oficializado pela boa fé e por um documento que comprovava a compra, mas não evitava qualquer violação do Estado ou das forças militares. Saí do beco para ir pra rua, mas isso não garantia qualquer efetividade ou garantia de moradia, tampouco assegurava um destino melhor na periferia, mas sobrava algum pra ter pão em casa. Pra estudar, eu tinha que sair da periferia, as escolas da favela funcionavam como um campo de concentração e subalternização da comunidade e manutenção do status quo. Com o tempo, as escolas de ensino médio se tornaram cada vez mais escassas na comunidade. Hoje, não existem escolas de ensino médio na favela, na verdade, acho que nunca teve.
Desci do bairro, fui pra uma escola central, na região hospitalar de Belo Horizonte. Sempre fui e voltei a pé, quando sobrava dinheiro, andava até certo ponto e pegava um ônibus que atravessava o complexo de barracões na Serra. Se manter assim não era fácil e, com certeza, muitos amigos e amigas deixaram de estudar por não ter condições disso. Antes, havia a necessidade de trabalho e sobrevivência, estavam condicionadas a pagar sua moradia e sustentar suas famílias. Nas escolas na periferia, as professoras reafirmavam: vocês não entrarão na universidade, sendo assim, devem procurar emprego para auxiliar a família.
No decorrer desse texto, vocês conseguirão perceber que não falo diretamente sobre a cor desses moradores, mas com o mínimo de reflexão, podemos concluir que a maioria da população que vive em vilas e aglomerados é negra e está condicionada a um processo histórico de negação do direito à terra e ao teto imposta ao nosso povo. Através de um processo brutal de escravização, a população africana foi sequestrada e trazida ao Brasil como mão-de-obra, não tínhamos (e ainda não temos) direito nem sobre próprio corpo. Mesmo após a pseudo-abolição, o Estado nunca garantiu o acesso da população afrodescendente aos direitos básicos garantidos constitucionalmente. Se somos iguais, por que o Brasil não reconhece e nem garante os direitos da população negra? Se somos todos iguais, por que a lei de terras em 1850 beneficiou a imigração europeia, cedendo aos imigrantes terras para que produzissem?
Enquanto isso, a população negra reivindicava por meio de muita luta, resistindo em quilombos e favelas. Ao entrar na Universidade, percebi que tudo isso era institucionalizado pelo racismo e reiterado por um projeto político maior, que inclusive perpetua e promove a nós, os negros, a negação do acesso à cidade.
Em 2010, acessei a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), uma das Universidades mais elitistas e brancas do Brasil. Do aglomerado até a Universidade, eu tinha que tomar duas conduções, ao todo, quatro passagens por dia. Optei, então, em viver próximo à Universidade, pois ainda saia mais barato do que me deslocar até a Serra todos os dias, além de poupar um pouco de tempo para que eu me dedicasse aos estudos, bem como corria menos chances de ser alvo das incertas da polícia na periferia.
Eu estudo à noite e me lembro que em uma dessas voltas para casa, fui recebida em um beco com um arma de um policial visivelmente alterado e nervoso, desses que estão na disposição de atirar, pra depois perguntar.
Foi então que tive o salto de questionar o porquê de muitos amigos e amigas negras evitarem esse caminho. Além dos aluguéis caros, se manter em uma região que os moradores são ricos e brancos é um verdadeiro teste de sobrevivência. Estudar era um privilégio, assim como “o morar”. A Universidade era mais uma instituição que negava claramente os direitos básicos em prol da manutenção da desumanização e do isolamento da população negra. Era invadir um espaço de produção de conhecimento reservado ao branco e explorador que, quase que automaticamente, herdava os lugares que sempre foram reservados a eles.
Procurei a assistência estudantil da Universidade e me informaram que para ter acesso ao “benefício” de acesso à moradia, eu deveria morar em outra cidade. Mas oras, sabia muito bem que isso não era um meio de análise, pois muitos estudantes que moravam no subúrbio e em cidades próximas na região metropolitana ainda gastavam menos com transporte do que eu. Como morar então?! Tentei na raça o aluguel, várias vezes, saí devendo aos proprietários, em sua maioria homens brancos.
Não aceitei ter que me sacrificar tanto pra garantir um direito à moradia. E em 2012, decidi romper com a lógica de sustentar a exploração capitalista e resolvi ocupar um terreno do Estado, junto ao meu companheiro negro, na época. Achava difícil, mas não impossível, acreditei que, como várias outras mulheres de luta, conseguiria levantar meu barraco naquela terra, queria ver a lona transformada em alvenaria. Foi quando eu descobri que a luta é bem maior que o sonho. Na ocupação Willian Rosa, pude ver mais claramente como o racismo atuava na negação dos direitos fundamentais ao povo negro, no não acesso à terra, na negação do direito à moradia, à saúde, à educação. Lá, reconheci vários heróis anônimos, me alimentava da luta daquele povo. Apesar de entender que só daquela maneira conseguiria obter meu direito a morar, não fui forte o bastante pra continuar aquela luta, ainda tinha que estudar, ainda tinha que cumprir meu primeiro sonho, me formar. E pra preto no Brasil, pra se ter algo, você tem que sacrificar sempre outra coisa.
Próximo de concluir meu curso com bastante dificuldade, ainda sigo tentando conseguir um lugar para morar, não consigo pagar aluguel, não tenho como viver em um local tão caro, sobretudo como mulher negra e só. Hoje, na casa dos meus pais, voltei ao aglomerado. Sei bem que é o melhor lugar pra se viver, o lugar que nasci; sei que aqui sou bem mais feliz e mais próxima de minha negritude e minha ancestralidade, mas ainda tenho dúvidas se vou conseguir freqüentar as aulas, sobretudo com os altos valores do transporte público. Ao conhecer e me adentrar no movimento de mulheres negras e movimentos negros, tive um reconhecimento de minha identidade, mas pra me reconhecer, eu tenho que ter um lugar, tenho a difícil missão de me manter, de morar, e isso mina qualquer outro desejo de reconhecimento estético-político que eu venha a ter. E, de fato, minha maior luta, meu maior empoderamento, é dormir tranqüila, sabendo que amanhã eu ainda sonharei com outros direitos, sob o mesmo teto.