Apesar de todo empenho e séculos de luta, tanto de escravos revoltosos como de abolicionistas e agora ativistas antiracismo, não podemos falar em abolição de maneira conclusa. E ainda temos de disputar sobre qual foi o significado de 13 de maio, quem foram seus protagonistas e o impacto de implicações para toda sociedade brasileira atual. Ainda interessa à branquitude defender que uma assinatura deu fim à todas as desigualdades sociais alimentadas pelo racismo, como se fosse possível com um passe de mágica dar conta de séculos de cativeiro, sequestros, mentira, trabalhos forçados, exploração sexual, estupro, assassinato, violências de toda natureza enfim. Tudo isso com graves consequências, especialmente para a mulher negra.
Tentando calar as revoltas populares, sobretudo após o exemplo de Saint Domingue, uma falsa abolição se apresentou como o melhor caminho para invisibilizar qualquer discussão. Sabe-se que por décadas os movimentos de fuga, insurgência e libertação independentes já eram quase que incontroláveis. As mulheres (amas de leite, mucamas e negras de ganho) desempenharam um papel importantíssimo na transmissão dos saberes, no cuidado com os quilombos e também na luta armada como Luísa Mahin, Teresa de Benguela e Dandara.
Mãe do abolicionista Luiz Gama, Luísa Mahin era uma africana livre, pagã que rejeitou o batismo cristão. Liderou a Revolta dos Malês (1835) em Salvador onde foi quituteira. Segundo a história, caso a revolta tivesse sucesso, a guerreira teria sido nomeada Rainha da Bahia. Apesar das mensagens organizando o levante estarem escritas em árabe, os planos de liberdade foram frustrados. Aproximadamente 70 revoltosos foram mortos e outros 500 foram punidos com chibatadas, penas de morte e deportação.
Dandara viveu no século XVII e foi guerreira do quilombo de Palmares, que no seu auge abrigou 50 mil pessoas, contando-se todos os mocambos pertencentes a Palmares. Foi companheira de Zumbi e mãe de seus três filhos. Participou e elaborou táticas e estratégias de guerra, além de incentivar e abrigar as mulheres insurgentes e “fugitivas” das casas grande vizinhas. Infelizmente, não há registros sobre seu local de nascimento, muito menos sobre qual era a sua aparência. Porém seu exemplo ainda é e será reverenciado por nós mulheres negras.
Rainha do quilombo do Quariterê, em Guaporé no interior do Mato Grosso, Teresa de Benguela liderou uma comunidade de três mil pessoas e depois da morte do marido, organizou a administração do quilombo, as estratégias de guerra e a forja de seus próprios instrumentos de trabalho. Também criou um sistema político similar ao Parlamentarismo, onde exercia a função de rainha do quilombo, que se submetida à decisão de um conselho de representantes. Havia um regular exército de resistência que possuia armas de fogo, obtidas ou no comércio de produtos excedentes do quilombo, ou mesmo de oponentes vencidos que tentaram invadir a comunidade.
Essas mulheres, assim como outras de quem não se tem se quer registros, contribuíram com o processo de libertação que já era iminente quando foram assinados os papéis que institucionalizaram a falsa abolição. Falsa sim, porque a liberdade “concedida” pelos governantes relegou à população negra, sobretudo para a mulher negra um status de não-cidadania e à sua permanência numa condição de não humanidade que persistem até hoje.
“Segundo Fanon, a imagem do negro nas sociedades colonizadas estava associada à selvageria, ao reino do animal, da fortaleza e da sexualidade exacerbada, enfim, ao plano do biológico. Nesse sentido, o patriarcado tratou de naturalizar a opressão feminina. Se a mulher branca era tida como sacralizada em sua função de esposa e mãe, à negra escravizada só restava a função de objeto sexual, consolidada via estupro institucionalizado.” (Revista ABPN, A mulher negra no pós-abolição. Ariella Silva Araujo).
“(…) o 13 de maio não significou o fim imediato das práticas escravistas das relações sociais de trabalho, com hábitos a ela aliados” (DOMINGUES, 2004, pg 245).
Depois da “abolição” nos oitocentos, o que se viu foi a persistência do trabalho doméstico escravo e do racismo que se institucionalizava cada vez mais, criando mecanismos para que nada fosse de fato mudado, para que se criasse uma falsa ilusão de democracia racial onde todos teriam oportunidades iguais. Argumentos como a defesa da boa ordem e da boa moral foram utilizados para coagir e controlar negras e negros libertos que seriam levados aos morros para que não “frustassem” os primeiros planos de urbanização do Rio de Janeiro, por exemplo.
O papel das mucamas e negras escravizadas submetidas ao trabalho doméstico escravo, agora empregadas domésticas, permaneceu praticamente inalterado. Com a abolição, nenhuma garantia foi dada sobre quaisquer direitos, fazendo com que milhares de mulheres, crianças e idosos fossem jogados a própria sorte. Somente mais de um século depois a lei versaria efetivamente sobre as atividades exercidas pelas trabalhadoras domésticas. Mesmo assim, dando pouca ou nenhuma atenção à regulamentação dos direitos conquistados por décadas, séculos de batalha.
A violência física e simbólica, empregada em homens e mulheres também permaneceu a mesma, o chicote que estalava nas sezalas ganhou as ruas, a sexualização das mulheres negras através do estupro forçado. Até hoje os ecos da negação dos direitos básicos (saúde, educação, moradia, o exercício do ir e vir) são ouvidos pelas periferias e ruas do nosso país que forjou uma “liberdade” que nada mais é que uma miragem que está muito longe de ser conquistada em sua plenitude.
Os mecanismos responsáveis pela criação das relações entre patrões-empregadas também respondem pela ideia da miscigenação voluntária, da mistura das raças e por consequência do mito da democracia racial. Ora, sabemos que desde a chegada dos portugueses, as mulheres indígenas e negras foram forçadas a manterem relação sexual com seus escravizadores. Porém essas estórias foram apagadas, transformadas no mito da miscigenação voluntária segundo qual mulheres negras teriam se deitado com seus escravizadores de bom grado, o que sempre esteve longe de ser uma verdade. Isso justificou experiências e teorias racistas (como os estudos de Nina Rodrigues), provocou o exílio de muitos dos mulatos – palavra de origem e uso completamente racistas – e manteve o status quo do sistema colonial.
A miscigenação – assunto tão polêmico quanto a sua origem – trouxe consigo marcas que são praticamente difíceis de apagar, tanto na identidade quanto na construção coletiva do ser social. Aqui, em especial, serviu também para mascarar o racismo e elaborar expressões e práticas racistas que todos nós conhecemos bem, como os elogios racistas. Nesse processo, às mulheres negras foi atribuído um significado puramente sexual, resultando também na continuidade do tráfico de mulheres e no comércio ilegal de seus corpos a revelia de sua própria vontade. O carnaval – que desceu dos morros e ganhou as ruas – serviu para exaltar e enaltercer essa imagem de país das bundas, das mulatas belezas e dos concursos baseados na exotificação das mulheres negras.
Somente em 2004 a sociedade brasileira assumiu institucionalmente que é um país racista, com a primeira lei de cotas nas universidades. Somente em 2013 foi criada uma emenda constitucional versando sobre o trabalho doméstico, uma promessa ainda a ser cumprida sobre seu direito a ter direitos. Agora em 2014 ainda temos mulheres sendo assassinadas por serem confundidas com praticantes de “magia negra”, filhos negros mortos por serem confundidos com bandidos, maridos desaparecidos. Mulheres sendo arrastadas como lixo, mortas em seu caminho até a padaria.
Depois de 126 anos de papel assinado e guardado, ainda são expostas as feridas do empreendimento colonial racista e opressor. E ainda lutamos por liberdade, dignidade e visibilidade. Ainda temos de nos debruçar sobre a tarefa de expor o racismo, dizer como ela afeta nossos corpos e cotidianos. Em nenhum momento foi tomada qualquer iniciativa que transformasse efetivamente à vida e o cotidiano da população negra. Não se enganem, esse sempre foi o plano.
Imagem destacada – Latuff, 2006.