“A interdição ou a proibição do aborto tem um recorte de classe social, porque são as mulheres pobres e negras as que mais são penalizadas com essa proibição. Porque são elas que são levadas à clínicas clandestinas, sem infraestrutura e sem pessoal competente para realizar a interrupção.”
Rosângela Talib, Católicas Pelo Direito de Decidir
Alguns vão dizer que esse texto não seria necessário. Eu de fato acredito que poderia encerrar aqui a minha participação, depois dessa citação contundente e realística da psicóloga e mestra em Ciências da Religião; Apesar disso, há ainda a necessidade de discutir aborto sob a ótica da mulher negra, a quem sempre foi negado o exercício pleno dos seus direitos sexuais e reprodutivos. É impossível falar disso sem um regaste histórico, partindo do princípio que somos um país colonizado e com pensamentos, costumes e cultura completamente permeados pelos valores eurocêntricos e exploradores.
Sabe-se que, com o objetivo do lucro, o sistema escravista impunha aos senhores de engenhos práticas absurdamente racistas: homens negros eram alugados como reprodutores; mulheres eram estupradas a fim de gerar filhos, futuros escravizados; filhos esses que eram certeza de lucros altos por serem da “linhagem de reprodutores”; seus seios eram alugados para filhos de senhores de engenho ou outros nascidos escravizados. A verdadeira indústria da reprodução era afetada principalmente pela crise no sistema, que começava a proibir a importação dos escravizados, que cada vez menos chegavam de África e ameaçavam os seus senhores quando insurgiam e, resistindo, criavam rebeliões. Uma espécie de eugenia era praticada, a medida em que negras e negros nascidos de “reprodutores” representavam um escravizado da melhor linhagem.
Além dessa prática, sabemos que as mulheres negras escravizadas eram estupradas pelos seus senhores e tinham seus filhos arrancados, na maioria das vezes mandados para outra cidade ou país por serem filhos bastardos. Anos mais tarde, disseminado por eugenistas como Nina Rodrigues, o pensamento de que a miscigenação resultava numa raça degenerada se espalhou, fazendo o estado brasileiro promover e patrocinar estudos, incentivando a reprodução entre mulheres e homens, brancos e negros.
Logo depois, Gilberto Freire iria rever tal teoria, mas dando uma pitada de romantização e folclore à miscigenação brasileira, alegando vir daí as características positivas do povo, criando alegorias para o resultado do estupro das mulheres negras e indígenas. Aqui novamente, a condição de mulher colonizada fala mais alto do que seu real direito à saúde sexual e reprodutiva.
Já mais recentemente, no século 20, temos as políticas de saúde reprodutiva encabeçadas pela OMS, que criticavam os conceitos de planejamento familiar cunhados no passado e visavam dar assistência e envolver outras pautas que não somente a contracepção ou limitação da prole.
Segundo Edna Roland:
“O desenvolvimento do conceito de direitos reprodutivos, impulsionado sobretudo pelo movimento feminista internacional, sendo os termos eventualmente utilizados de forma intercambiável (…) O conceito de direitos reprodutivos e, posteriormente, o de direitos sexuais — que passou a ser utilizado a partir da Conferência do Cairo”
Apesar da impressão de que havia uma preocupação com a saúde reprodutiva da mulher negra, da falsa promoção ao acesso à informação e desse amplo debate – inclusive no seio do movimento feminista – as mulheres negras continuavam ser vítimas das políticas de esterilização. A exemplo disso, a pesquisa realizada na década de 80 pela demógrafa Elza Berquó, apresentada num seminário para discutir a normatização da esterilização feminina, aponta que o Maranhão, estado que apresentava a maior proporção de população negra, tinha também os mais altos índices de esterilização feminina. Sabe-se também que foi nesse período a realização do alto número de cirurgias de laqueadura forçadas, promovida nas maternidades públicas, de onde as mulheres negras e pobres eram (e continuam sendo) as maiores usuárias.
Perceba que o corpo da mulher negra e por conseguinte, seus direitos reprodutivos e sexuais nunca estiveram nas suas mãos: seja para parir ou para evitar a gravidez, as políticas e as práticas do estado (escravista ou democrático, mas sempre com valores racistas e sexistas) tem sempre procurado preterir suas especificidades e relegar sua historicidade.
Problematizando nossa condição de mulher negra, percebam que a nós, pouco foi dado o direito de escolher levar a diante uma gravidez ou não. Sabemos que justamente por conta do nosso passado, somos as mais pobres, as que mais precisam trabalhar e as que ganham menos dinheiro. Nessas condições, como ter um filho? Como levar adiante uma gravidez? No Brasil o aborto é crime, exceto quando o feto é anencéfalo ou fruto de estupro. Numa provável escolha por interrupção de gravidez, as mulheres negras recorrem a clínicas clandestinas, sem infraestrutura e sem profissionais capacitados. E o resultado dessa combinação a gente já conhece: a morte, que pelas estatísticas, constam de uma mulher a cada dois dias!
São mais de 1 milhão de abortos clandestinos e 250 mil internações por complicações por ano, em que mulheres negras e pobres são as maiores vítimas, por não terem acesso a clínicas fora do país ou a outros métodos mais “discretos”.
Ano passado, tivemos as emblemáticas perdas de Elisângela Barbosa e de Jandira Magdalena dos Santos Cruz, ambas jovens mulheres negras que foram vítimas de procedimentos clandestinos na cidade do Rio de Janeiro. Apesar desse destaque, sabemos que milhares de mulheres morrem vítimas de aborto clandestino, que é tão somente consequência da negligência do Estado em negociar, minimizar e desprezar os nossos direitos sexuais e reprodutivos, o direito ao nosso corpo. Por isso a nossa luta pela descriminalização e despenalização do aborto precisa ser politizada, pautada na nossa história de país colonizado e com resquícios de valores de uma sociedade escravista, sem esquecer que já passou da hora do nosso direito ao corpo, à vida ou interrupção desta que cresce em nosso útero.
“Descriminalização do aborto significa que ele vai deixar de ser crime. Ele vai sair do código penal como está hoje (…) É considerado crime, um atentado contra a vida e a penalidade atualmente é de 1 a 3 anos de prisão”
Não podemos permitir que as mulheres negras morram, sejam condenadas e criminalizadas, não podemos fechar nossos olhos e nos isentar do debate e da pressão aos políticos e seus mecanismos legais que são racistas, machistas e sexistas e que estão prontos para legislar contra nós. Aborto legal e seguro deve ser nosso direito, assim como o acesso ao parto humanizado – são os nossos direitos à escolha que devem ser respeitados e garantidos.
Imagem destacada: Mulher Negra e o Feminismo – Fanpage.
REFERÊNCIAS
Entrevista Rosângela Talib. Jornal Candeia, 2015
Escravidão e Reprodução: A mulher preta e o estupro. Walter Passos, 2014
Saúde da Reprodução Negra no Brasil: Entre Malthus e Gobineau. Edna Roland, 1998.
Mulher Negra, o Aborto e a solidão. Nathália Diórgenes, 2014.