Você me pergunta se vou dizer que você é racista, me responda você!
Racismo não é polêmica, muito menos rancor ou falta de humor. Mais que ninguém, que se pensa um defensor dos direitos de seus pares negros e portanto um aliado na luta contra o racismo, deveria saber disso. Deveria saber também que cogitar tal hipótese e ainda enumerar amigos negros para se defender, é viver num mundo tal de privilégio onde se pode rebater a crítica dizendo que as vozes de mulheres negras são apenas controvérsia, ou fazer um grande esforço para esconder o próprio racismo. Quem sabe os dois.
Ah! Branco, dá um tempo! Você diz que “dói” ver luta de seus colegas negros, menosprezados e invisibilizados por sua cor. No caso da mulher negra, tudo se agrava. Você certamente tem ciência das recentes e tristes notícias sobre Neuza Borges, uma das maiores atrizes que temos, mas que por seu lugar de mulher negra não encontra lugar na televisão brasileira. Vive na carne a falta da carne em seu prato porque a próxima novela não acontecerá tão cedo. Vai depender da “boa vontade” de alguém, não do seu talento.
Você me pergunta se o problema é o sexo ou “as nega”, querendo desacreditar nossas críticas fundamentadas não em pré-julgamento, mas em fatos veiculados na mídia. Notícias essas que agora dão conta que de repente a Globo, antes tão entusiasmada com seu projeto, parece que já não está tão feliz assim. Você argumenta que se trata de uma prosódia pura e simplesmente. Alega que o título da série veio de uma mulher negra. Aliás, me pergunto se essa mesma mulher recebeu os devidos créditos e bufunfa por sua colaboração já que foi descrita por você como nada mais que um estereótipo, alguém que não merece nome, muito menos sobrenome.
Não tem problema branco, vou enegrecer tudo novamente.
As negas, volto a explicar, não é uma questão de prosódia.
Tal expressão transforma o corpo da mulher negra em peça, como eram chamados os escravizados, a ser consumida por uma sociedade racista. Nos coloca no lugar de mercadoria de segunda mão que não receberá o mesmo tratamento da carne branca e delicada, aquela que não é “suas nêga”. A expressão é embuída não apenas de pensamento escravocrata, mas também de machismo, cujas consequências sentimos na pele por sermos mulheres negras. Trata-se portanto de uma dupla violência que categoriza mulheres de acordo com sua cor de pele, qualidade que determinará qual o valor e o lugar que têm.
Ainda sobre o nome da série, temo que muitas pessoas não saibam a diferença entre um adjetivo racista e um adjetivo comum. Na Bahia, nego e nega tem conotações diferentes das que tem em Recife, por exemplo. E dependendo do uso da frase, do tom com que se fala, de quem recebe e de quem envia a mensagem, você ofende ou elogia. No entanto, a construção “não sou tuas nega” não permite outro significado possível que não o racismo num contexto hediondo de 350 anos de escravização. E se alguém perpetua adjetivo racista, que nome isso deve ter? Ah! Branco, me diga você!
Sua idéia, aos olhos poucos atentos ou interessados apenas em gerar lucro, pode até parecer de grande monta. Porém, está longe de gerar visibilidade ou dignidade. Aliás, exatamente o contrário. Como quase sempre acontece com literatura e dramaturgia feita por brancos sobre negros, nos trata como simples objeto de estudo, algo que pode ser manipulado e observado justamente como você faz, nos ensina a professora Lígia Fonseca Ferreira. Nada mais é que negrismo e não negritude, como tem insistido o escritor e jornalista Oswaldo de Camargo.
Sim, estou dizendo com todas as letras que quem deve escrever para o negro e pelo negro deve ser ele mesmo, não uma pessoa branca. Chame isso de racismo reverso se quiser. Para gente o nome disso é visibilidade, esta sim capaz de nos ter algum benefício, com poderes para mudar o modo como seremos retratadas na próxima novela, na próxima minissérie. Sem isso, nada mudará, seguiremos sendo uma sociedade estruturalmente racista e machista onde a mulher negra nada mais é que um estereótipo para racista se divertir ou entreter.
Uma sociedade em que nós, mulheres negras, não somos protagonistas nem mesmo num seriado a quem damos o nome. Sim, as notícias têm mudado, mas as primeiras davam conta de uma branca como a atriz principal. Ela que, atrás de um balcão de bar, vai nos observar como animais num zoológico, ela quem fala em nosso lugar. Nossa história, sofrimento e capacidade de discursar sobre nós mesmas são meros detalhes. A narradora da trama, nesse caso narrador, é alguém isento desse mesmo sofrimento. Não é bobagem, nem caretice, nem ditadura do politicamente correto como alguns vão afirmar. É critica e zelo por nossa memória e existência.
Você argumenta que “um programa que refletisse um pouco a dura vida daquelas pessoas, além de empregar e trazer para o protagonismo mais atores negros” seria desejável. E na verdade seria mesmo. Desde que escrito, produzido e protagonizado por negros. Não por alguém que nem se deu ao trabalho de creditar a mulher negra que deu o título à série. Esse detalhe é causa e ao mesmo tempo consequência de todos os outros: a fetichização de nossa sexualidade e corpos, a ênfase nos estereótipos, a violência simbólica que a série representa.
Como pretender que nos desumanizar é visibilidade? Desde quando nos tratar como a carne mais barata do mercado como canta Elza, a Soares, é ser aliado? Ah! Branco, dá um tempo! Suas palavras apenas enfatizaram suas intenções, a cada parágrafo tivemos a certeza de que nossas críticas são fundamentais e muito bem fundamentadas, por isso incomodam tanto. Seguiremos denunciando o racismo e o machismo daqueles que se fiam no privilégio para destilar veneno e cometer tais violências contra a mulher negra.
Isso não é sobre sexo. É sobre denunciar um sistema perverso que exclui as mulheres negras de todas as esferas e nos torna menos que humanas. Sistema esse que também incide sobre o homem negro, alvo primeiro e preferencial da violência policial e da hipersexualização do seu corpo: o “homem do pau grande” é resultado da brutal animalização do corpo negro, sempre pronto pro sexo. Onde está a crítica desse sistema na televisão brasileira? De certo não está em seu seriado, muito menos em sua fala.
Repudiamos suas palavras porque fomos estupradas nas senzalas e continuamos a ser na dramaturgia feita por brancos sobre nós através de imagens estereotipadas em seriados, novelas e minisséries. Esse é um dos mecanismos que a aliança entre o racismo usa para se perpetuar: hipersexualizando a mulher negra que se torna desprezível para outros papéis sociais. Você fala da mulata quente, gostosa, fogosa. Somos muito mais que isso. Precisamos ser mostradas como as mulheres do dia-a-dia, que trabalham, dançam, fazem festa e querem sexo sim, mas que não são apenas isso.
Não estamos aqui menosprezando nem dizendo que não somos camareiras, domésticas, cabeleireiras: também somos trabalhadoras domésticas, cuidadoras. Mas sobretudo, com as nossas conquistas e a nossa luta, galgamos lugares, posições: somos diretoras, bailarinas, advogadas, publicitárias, escritoras, professoras e médicas. Onde elas estão no seu seriado? Será que elas não moram em Cordovil? Será que elas não estão nas periferias? Duvido muito. NÃO aceitaremos mais ser caricaturas! Por isso a critica vai além do nome da série, o que por si só é deveras problemático.
Ah! Branco, dá um tempo! Nem queremos crer que você está se comparando e recorrendo a Spike Lee para credibilizar seu trabalho. Não, nos recusamos. E não é somente porque Spike Lee é preto, é porque não vemos nada, absolutamente nada de crítica racial em “Sexo e as Nega” como vemos em “Faça a coisa certa”. O gueto é paisagem, mas também é a vida, é a teia, é o sangue do autor que não está só observando e contando sua versão dos fatos: Spike Lee está no gueto, ele é o gueto. E não alguém que não é “as nega”, alguém que pretende que nosso único objetivo de vida é ter um parceiro sexual.
E por favor, respeite nossa memória e retire suas palavras ao nos chamar de capitães do mato. Não estamos perseguindo as atrizes negras desse seriado, muito menos as mulheres reais que são representadas pelas suas personagens. Quem conhece um pouquinho de história e dela faz um uso bem intencionado, sabe que existem outras versões além daquela em que fomos escravizados sem lutar, viemos sem resistência num navio negreiro. Não se faça de desentendido, quem criou capitães do mato não foram os próprios negros.
Acusar alguém de “se tornar capitão do mato” é algo muito mais complexo do que formular uma frase. É impossível que sejamos algozes de nós mesmos, isso é falácia. Retire sua fala e reflita sobre o que significa nosso boicote e critica que têm como alvo um modelo e um sistema historicamente racistas, em que nem o direito de falar, contar nossas próprias histórias e tecer criticas nós temos. Repito: isso não é uma caçada ao povo negro nem à mulher preta e pobre. É sobre o racismo enrustidamente manifesto, sem nem se sentir ou admitir.
Manifestamos profunda oposição a esse mundo, de quem bate e finge entender a dor daquele que apanha. Esse mundo onde racismo agrada, é piada pronta para gerar audiência e naturalizar o racismo. Estamos fartas do seu discurso, de programas que usam blackface, que transformam toda mulher negra em empregada doméstica ou mulata globeleza. Nossos corpos não são espaço para seu deleite, divertimento, lucro ou usufruto. Nós somos mulheres negras de pena e teclado, ciosas e autoras de nossos próprios enredos e objetivos de vida.
Ah! Branco, dá um tempo! Quem nos silencia é racista sim.
Assinam
Blogueiras Negras
Bloco das Pretas
Gorda & Sapatão
Aline Djokic
Sheu Nascimento
Djamila Ribeiro
Leila Negalaize Lz-panelladexpressão
Rede Sapatà
Coletivo Audre Lorde
Negra e lésbica
Mirt’s Sants
Mulheres Negras Capixabas – MNC
Coletivo Negrada – UFES
Mariana Costa Barbosa
Cláudia Isabele dos Santos Silva
Ginga Movimento de Mulheres Negras do Subúrbio
Blogueiras Feministas
Maria Rita Casagrande
Charô Nunes
Marjorie N. Chaves
Festival Latinidades
Xênia Mello
Hanayrá Negreiros
Vanessa Beco
Organização de Mulheres Negras Ativas
Natália Néris
Mayã Martins Correia
Luciana Maria de Almeida
Viviana Santiago
Sandra Muñoz, Movimento de Lésbicas e Mulheres Bissexuais da Bahia
Cintia Clara, Anapólis,GO
Daniela Lima
Flavia Souza, RJ
Rosalia Lemos, E’LÉÉKÒ e Doutoranda em Política Social, UFF
Flavia souza Atriz, cantora e coreografa, formada pela UFRJ, ativista e fundadora e coordenadora geral da Associação Grupo Cultural Afrolaje
Juliana Gonçalves, jornalista
Cojira/SP- Comissão dos Jornalistas pela Igualdade Racial
Thiane Neves Barros
Coletivo Flores Crew
Ofensiva Negritude
Nêgo que é Nêgo não Nega a Nêga
Rose Dayanne Santana, jornalista
Tamila Silva dos Santos
Luana Euzébia. Pedagoga, professora. cantora no grupo Memória de Mulheres Urbanas e participante do projeto Donas da Rima, DF.
Isabele Eleonora do Espírito Santo Silva, Rede Sapatà
Viviane Lira da Silva- Rede Sapatá, JP
Larissa Santiago
Daniela Lima – Coturno de Vênus Brasília
Sabrine Fortes Ulguim, historiadora – Novo Hamburgo, RS
Viviane Anibal – Grupo de Trabalho sobre Relações Raciais do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo.
Rosangela José da Silva – Administradora, dona do canal Rosajorosa
Carolina Santos B. Pinho – Professora. Doutoranda na Universidade Estadual de Campinas.
Regina Maria da Silva, Professora (Educação Básica e Ensino Superior), Pedagoga e Socióloga, Mestre em Educação: História, Política, Sociedade)
Regina Maria da Silva, Professora (Educação Básica e Ensino Superior), Pedagoga e Socióloga, Mestre em Educação: História, Política, Sociedade)
Carolina Ferreira de Souza. Graduanda em Engenharia de Pesca.
Jéssica Santos – Fórum de Juventude Negra do Amazonas- FOJUNE
Uiala Mukaji – Sociedade das Mulheres Negras de Pernambuco
Instituto AMMA Psique e Negritude
Bamidelê – Organização de Mulheres Negras na Paraíba
Instituto de Mulheres Negras do Amapá
Rede Mulheres Negras do Paraná
Criola – Organização de Mulheres Negras
Geledés – Instituto da Mulher Negra
Associação Cultural de Mulheres Negras – ACMUN
Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras – AMNB
Nzinga Mbandi
Amanda Lopes da Silva
Fernanda Nunes Sousa Mendes
Sueli Feliziani
Fernanda Nunes Sousa Mendes
Gabi Porfírio
CEDENPA – Centro de estudos e defesa do negro do Pará
Rosana Santos Jotta
Sara Joker Siqueira – artista visual e atriz
Luiza Regina Alves de Oliveira – Psicóloga e Educadora Popular
Nina Franco – fotógrafa, artista visual e ativista anarquista – feminista
Janaína Damaceno. Antropóloga, Fotógrafa e Professora universitária.
Instituto Patrícia Galvão
Coletivo Roda da Mãe Preta
Manifesto Crespo
Coletivo Kilombagem
Bieta Rodrigues Lecompte – Produtora de Moda/Figurino , Dj e ativista do Coletivo Rainhas Negras – ArtePoliticaFeministaNegra
UPDATE – Neuza Borges vai muito bem obrigada e segue denunciando o racismo na televisão.