A escrevivência que brota hoje, Dia Internacional da Mulher, vem da cumplicidade. Da cumplicidade de mulheres negras, que diversas em pontos de vista, cabelos e tons de pele, uniram-se para chamar de seu o lugar de mãe. Um lugar historicamente negado na sociedade patriarcal, racista e capitalista.
Faz quatro anos que participo do Coletivo SaaantaMãe, uma rede de mulheres mães do facebook. Fundado por mães, gestantes e “tentantes” do bairro carioca de Santa Tereza, o grupo reúne aproximadamente 2.000 mulheres de várias partes do mundo. Em linhas gerais, o Coletivo dedica-se a discutir questões relacionadas à criação com apego (amamentação prolongada, cama compartilhada, alimentação saudável). Uma agenda repensada dentro dos marcos da “maternagem”. De forma resumida, maternar representa uma releitura da maternidade na qual caberia às mulheres assumirem o protagonismo que o papel de mãe, ciente e responsável pelo ato de cuidar de nossas “crias”, exige. Nessa rede como em outras, há uma linguagem própria e, inclusive o próprio termo “mãe” é usualmente substituído pelo de “materna”. A força da vertente é sentida na quantidade de sites, blogs e grupos, que juntos compõem o que se denomina “blogsfera materna”. Tal rede – a “maternagem consciente” – tem sido alvo de muitas críticas pela hegemonia do feminismo branco liberal (“fiz a minha parte”) na condução de suas agendas.
Conversas sobre a necessidade de a “mulher se impor” para fazer valer o direito de um “parto humanizado”, que no Rio de Janeiro é feito quase exclusivamente por obstetras que não aceitam planos de saúde e que cobram entre $8 e $15.000,00 para trazer ao mundo bebês de forma “natural” em banheiras, chuveiros ou em partos domicialiares, silenciam problemas estruturais de raça e classe que concentram as sujeitas de direito ao sonhado parto natural entre as mulheres brancas de classe média e alta. Tais conversas reforçam também o grave problema da apropriação cultural. Postos de trabalho como o das parteiras. Práticas como a do parto domiciliar. Do uso de sling para carregar bebês. Técnicas como a versão externa, uma manobra (VCE) para virar bebês que se encontram sentados nas últimas semanas de gestação, tornam-se “bens de consumo” tarifados pelas altas tabelas do capitalismo.
Enquanto esta agenda normatizadora da branquidade e naturalizadora dos seus privilégios fortalece-se, ouvimos relatos aterrorizantes como o das residentes em Ginecologia e Obstetrícia sobre a condução de um trabalho de parto de uma jovem de dezesseis anos por uma médica plantonista que por não ter “tempo a perder” submeteu a “materna” a procedimentos extremamente violentos e desnecessários como a manobra kristeler e a episotomia. Embora a cor da mãe adolescente não seja mencionada, não é absurdo cogitar que se trate de mais um corpo negro sujeito aos desmandes de saberes médicos que patologizam e criminalizam a população negra, pobre em sua maioria. Não vou me aprofundar, até porque certamente, a discussão mais bela e poderosa sobre o assunto foi feita pela amiga Guaraciara Gonçalves do blog Preta Materna. O que quero frisar, por ora, é que a discussão sobre maternagem consciente é profundamente afetada pelo racismo estrutural. Pensando em articulação ao gênero, a variável raça coloca mulheres negras à margem do debate, invisibilizando e desqualificando nossas experiências e pautas. No entanto, a compreensão da “maternagem consciente” como um campo de disputas que nós, negrasmães, devemos ocupar tem contribuído para que muitas mulheres do Coletivo Saaanta Mãe reconheçam o racismo e os privilégios aos quais usufruem como brancas. Sabemos que tal reconhecimento é apenas o começo. Um começo essencial para lutas em prol de um mundo mais justo e igualitário para as crianças que educamos.
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Não por acaso foi nesse contexto de denúncia dos racismos e silenciamentos tão familiares e naturalizados que travei contato com a história de Ana Kellen Moura. Trata-se de uma negramãe, de 32 anos. Com família oriunda do subúrbio, Ana Liz, como é conhecida no facebook, além de conceituada decoradora de interiores, é desenhista, poetisa, dançarina e praticante de Yoga. Uma mulher preta que assim como tantas outras exerce seu trabalho com força e criatividade, a despeito do racismo e do machismo que cotidianamente nos acompanha. Em abril de 2015, o marido de Ana Liz, o belga Benoit Gaston, foi assassinado com um tiro na cabeça, no hostel no qual trabalhava na companhia da esposa e de outros funcionários. Embora o caso não tenha chamado a atenção da grande mídia, podemos encontrar uma matéria que contribui para compreendermos como os estereótipos de gênero e sexualidade afetam as mulheres negras. Menos do que reconstituir o caso e deliberar culpa ou inocência – função específica das instâncias de controle social (polícia, justiça, juízes) – como feminista negra interseccional, parei para refletir sobre a conclusão da imprensa de que Ana Liz teria planejado o crime por motivo “torpe” de “ganância”. No link disponibilizado, chama a atenção a narrativa policial articulada a closes no semblante e nas duas tatuagens que Ana Liz, a qual não ouvimos sequer a voz, possui nos seus antebraços. Soma-se a este jogo de cena, a narração de “evidências criminais” que “maternas” diariamente praticam tais quais “pedir que o filho beije o pai antes de ir se deitar” e “fazer sexo com o marido antes de dormir”. Levanta a mão a mãe-esposa-heterossexual que nunca cumpriu estes ritos antes do fechar os olhos e se entregar a uma merecida noite de sono?
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A ética feminista me impediria de usar um ditado opressor e machista, mas na falta de um melhor… Para as mulheres negras o “buraco é mais embaixo”. A despeito de histórias individuais de ascensão de classe através do trabalho, a vulnerabilidade parece estar entranhada em nossos corpos, impedindo que milhares de Ana Liz sejamos vistas como mulheres, mães (maternas menos ainda) e esposas. Em vez disso, somos condenadas pelo “crime” de pertencimentos racial e de gênero. Embora seja portadora de endereço fixo, sem antecedentes criminais e desde sempre tenha colaborado com as investigações, Ana Kellen Moura segue presa em Bangu 8 desde maio de 2015. Acusada de homicídio triplamente qualificado – “parentesco, motivo torpe e premeditação”, seu filho, um menino de quatro anos, encontra-se sob os cuidados da avó materna. A criança tem a guarda disputada pela mãe de seu pai, que tem planos de levar o neto para viver na Bélgica. A despeito da condução das investigações – o que, decididamente não nos cabe – o que se realça no presente caso é o papel da mídia como espaço de controle social, via reprodução de estereótipos. Chama atenção também o não cumprimento de direitos básicos de cidadania que está mãe e sua “cria” poderiam e deveriam estar gozando. E sobre os dois aspectos fere a alma constatar que Ana Liz não é a primeira e nem será a última. Dados recentes indicam que a maioria das mulheres em situação de privação de liberdade são negras. Mulheres que ao longo de suas vidas sofreram um ou muitos episódios de violência, seja por parte de familiares, maridos ou agentes do Estado. Isso tem a ver com o que a criminologista feminista Vera de Andrade denomina “criminalização seletiva do sistema penal”. A história do racismo no Brasil tem determinado a sorte de Ana Liz e de muitas de suas companheiras de cárcere. Mulheres negras que apesar de terem cumprido os papeis sociais esperados de “mãe” e “reprodutora” são condenadas pela sociedade patriarcal, racista e capitalista. Uma condenação que as afasta de filhos e parentes. Um modelo de privação de liberdade patriarcal, idealizado por e para homens. Trata-se de um sistema que reforça o racismo e o machismo simultaneamente. Se considerarmos que as visitas em penitenciárias femininas são muito menores que aquelas observadas nas masculinas. Que juntas as 508 unidades prisionais para mulheres contam com apenas dezesseis ginecologistas. Que estamos falando de uma população carcerária de aproximadamente 40.000 mulheres entre 20 e 35 anos de idade e que, na maior parte, são chefes de família negras, praticantes de crimes ligados à sua vulnerabilidade social. temos muito o que lutar. Neste 08 de março e sempre, nossa ressignificação do “triplamente qualificado” circunscreve-se à guerra diária pelo reconhecimento como negras, mulheres e mães. A história de Ana Liz faz pensar nas palavras certeiras de Conceição Evaristo. Precisamos, mais do que nunca, lançar mão da “escrita que faz sangrar”.
Convidamos todxs a empretecer o Dia Internacional da Mulher através da Campanha #AnaLizEHermanJuntos. Para participar, compartilhe este texto com as seguintes hashtags.
#AnaLizeHermanjuntos #libertemAnaLiz #AnaLizHabbeasCorpusJá #AnaLizÉsaaantamãe