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“Não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minha.”
Audre Lorde
Quando se trata de artes visuais, quase não ouvimos falar em artistas negras/os e nem em suas respectivas obras. Neste artigo, tentando romper com a invisibilidade imposta pelo racismo e pelo sexismo, darei especial destaque às obras produzidas por mulheres negras.
Atualmente, o número de artistas negras atuantes cresceu e trouxe consigo contribuições para mudanças significativas no cenário da arte contemporânea, a exemplo de Rosana Paulino, Grada Kilomba, Sônia Gomes, Zanele Muholi, Heloisa França, Angélica Dass, Sarah Lewis, Lydia Blas, Pola Fernandez, dentre outras, com seus conteúdos de matrizes africanas.
Vale lembrar que há muitos anos atrás, antes de realizarem a travessia atlântica, nossas/os ancestrais foram obrigadas/os a dar dezenas de voltas em torno do Baobá, – a árvore da vida que carrega consigo “a força da resistência africana e a história da devoção do nosso povo negro” (Educando e Semeando, 2014), para ali depositarem suas crenças, origens, território, memórias. Descendentes de reis e rainhas, foram espalhadas/os por muitos lugares para que não pudessem manter a comunicação, a união e preservar suas estórias, que são nossas enquanto povo negro. No decorrer dos séculos, aprendemos a dar voltas em sentido contrário em torno do Baobá, na tentativa de resgatar nossas memórias e histórias.
A fotografia, fragmento das artes visuais que é discurso e conta estórias, por muito tempo foi utilizada para criar narrativas transversais sobre o nosso imaginário. A tentativa de negação de humanidade e dignidade expressa em imagens que nos associavam e muitas vezes nos associam à pobreza, sob a ótica eurocêntrica e colonial, e nos representam como coitadas/os, corpos objetificados, animais, negras/os, escravas/os, dentre outras, persiste nas populações africanas que foram e ainda são submetidas no contexto da diáspora. Seguindo os passos das nossas e dos nossos ancestrais, aos poucos fomos nos reapropriando do que é nosso.
Com o acesso à tecnologia, artistas negras registram corpos marginalizados e fazem representações de si para o mundo, a exemplo das jovens fotógrafas e artistas visuais Zanele Muholi e Heloisa França, as quais trago à baila textual.
Zanele Muholi, como ela própria se intitula, é uma ativista visual. Mulher negra, lésbica, sul africana e mestra em Belas Artes pela Universidade Ryerson, de Toronto, no Canadá. Sua produção fotográfica gira em torno de registrar as mulheres negras lésbicas, trans e travestis na tentativa de dar visibilidade aquelas que a sociedade invisibiliza e de reescrever sua própria história.
Heloisa França, por sua vez, possui uma produção fotográfica que perpassa pelo campo mítico da religião de matriz africana e tem como foco o corpo da mulher negra enquanto corpo-político, corpo-templo, ancestralidade e fertilidade. Mulher negra, bissexual e natural de Feira de Santana-BA, é graduada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.
Ambas atuam em alguns dos ramos das artes visuais, como fotografia, instalação, performance, vídeo, texto e/ou arte-educação, mais aqui gostaria de apresentar, em especial, seus trabalhos fotográficos de autorretrato que, além de terem uma preocupação estética, ao investirem no autoconhecimento, pela linguagem, as fotografias encontram a si próprias e ao/aos outros.
Na séria fotográfica “Somnyama Ngonyama”, Zanele Muholi volta à câmera para si. Em preto e branco. A respeito de se colocar no lugar de diferentes personagens e arquétipos, segundo Camila Domingues para o site Nítida – Fotografia e Feminismo (2016), Muholi comentou:
Tenho me retratado de forma altamente estilizada usando a linguagem performática e expressiva do teatro. O rosto negro e seus detalhes tornam-se o ponto focal, forçando o espectador a questionar o seu desejo de olhar para imagem da minha figura negra. Ao exergar a escuridão, o que eu sinto é continuamente realizado pelo outro, o privilegiado. (DOMINGUES, 2016)
Essas imagens em preto e branco oferecem um olhar comemorativo ao corpo e à política de expressão. Aqui, Muholi transforma a câmera em si mesma para explorar a dinâmica racial no Sul da África. Seus ousados autorretratos em preto-e-branco confrontam o racismo, sexismo e a lesbofobia, a política de raça e pigmento no arquivo fotográfico de algumas galerias por onde suas obras vão.
Uma das coisas que tocam em seus autorretratos é vislumbrar sua vida, poder ver sua sensibilidade, afeto e força negra e lésbica impressa na imagem. Muholi utiliza o próprio corpo enquanto um sujeito de encenação, derrubando o muro entre sujeito e objeto, observado e observador. Essas dicotomias que também estão problematizadas no seu uso de fotografias de autorretrato, enquanto ela vira seu próprio olhar para se observar. Recorre a estratégias performáticas para aguçar ou potencializar nossos sentidos na e com a imagem e sua teatralidade tem vocação de abrir os sentidos de quem a ver.
O que primeiro chama atenção nos autorretratos de Heloisa França, é a existência e a afirmação de uma identidade, seja pelas vestes ou traços, é enxergar a multiplicidade entre nós mulheres negras e ver nossas individualidades. Em entrevista França comenta:
…produzir autorretratos é trilhar o meu próprio caminho, em busca de mim mesma, só que dentro do universo das inúmeras buscas necessárias que nos envolve enquanto mulheres negras e algumas particularidades do meu trajeto, como as relações que me compõem, sejam elas com laços maternos ou afetivo-sexuais, minhas ligações com a ancestralidade e a espiritualidade que cultivo… toca também na percepção do meu próprio corpo e no trabalho da estima. (FRANÇA, 2016)
Em suas obras, França acolhe e faz aflorar memórias e histórias de vida marcadas pelo tempo. Numa experiência biográfica, a artista apresenta esse seu corpo feminino negro também sendo político e templo, compreendendo sua imagem, práticas e seus modos de ser e viver, suas intencionalidades e sua ação de autorretratar-se como tal. França consegue rever sua própria construção identitária, por meio de suas imagens, e rompe com estereótipos que persistem no Brasil e no mundo racista e preconceituoso.
França constrói um projeto de fotos que no primeiro olhar está distante do processo de conhecimento científico. Porém, ela estabelece um diálogo entre os discursos de Frantz Fanon (2008) e Donna J. Haraway (1991) para apresentar uma obra feita explicitamente de uma posição particular e incorporada, mas que também reflete sobre a experiência e a violência de viver num corpo negro feminino numa sociedade (pós)colonial. Em concordância com pensamentos de Thomas J. Csordas (1995), ela mostra o corpo como agente que experimenta visceralmente as culturas (des)coloniais e de resistência no Brasil, se apresentando e sua religião. O resultado em imagem da cumplicidade entre a retratada e a artista, apontada pelos discursos da tradição da história da arte como necessariamente verdadeira e real, emerge agora no limite da performance e encenação.
Ambas artistas, além de terem uma preocupação estética, contam sobre si através de suas respectivas obras e estão preocupadas com as mulheres negras, em especial. Se, por um lado, temos Muholi retratando uma estória de se no contexto da sul africano, por outro, temos França no Brasil e, no final, elas se encontram em trabalhos historiográficos sobre a mulher negra não-heterossexual. São corpos femininos negros que trafegam não somente pela baila fotográfica, mas em espaço públicos.
Muholi mapeou a história da identidade das mulheres negras lésbicas no pós-apartheid na África do Sul e França produziu alguns ensaios, mas sempre trazendo à imagem mulheres negras nas suas diversas gerações e em contextos de afeto, criações e ou religião.
Vistas estas obras e suas ativistas-artistas visuais, portanto, não podemos deixar de visualizar e reconhecer a produção artística e cultural das nossas mulheres negras, sujeitos que compõem, reelaboram e interpretam uma arte bonita, complexa, sofisticada e, acima de tudo, contam histórias em que nós, povo negro, nos representamos.
Conheça mais sobre as artistas:
http://stevenson.info/artist/zanele-muholi/works
http://m.facebook.com/heloisafrancafotografia/?ref=page_internal&mt_nav=1
Referência
31ª BIENAL DA ARTE EM SÃO PAULO. História do Baobá. 2014. Blog Educando e Semeando. Disponível em: <http://educandoesemeando.blogspot.com.br/p/historia-do-baoba.html?m=0> Acessado em: 14 de Dezembro de 2016.
DOMINGUES, Camila. Zanele Muholi. Nítida – Fotografia e Feminismo. Disponível em: < http://nitidafotografia.wordpress.com >Acessado em: 12 de Dezembro de 2016.
CSORDAS, Thomas J. Embodiment and experience: The existential ground of culture and self. Vol. 2. Cambridge University Press, 1995.
FANON, Frantz. Pele negra mascaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
HARAWAY, Donna J. “Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective”. In: ______ Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature. New York: Routledge, 1991.