“A vovó não gosta de folha de côco no terreiro
Faz ‘alembrar’ o tempo do cativeiro …”
Uberlândia é palco de uma tradição que existe a mais de 100 anos, o Congado. É uma tradição cultural afro brasileira que reúne práticas e rituais elaborados por negras e negros para relembrar o sofrimento e as lutas no contexto da escravização brasileira e manter viva a memória de nossos ancestrais. São músicas, sons, danças e cores, expressos pelos ternos de congado, cheios de significado que alegram o mês de outubro e dão vida ao Centro da cidade. Porém, o Congado em Uberlândia, em sua longa trajetória de permanência na cidade, carrega a luta de congadeiras e congadeiros pelo reconhecimento, a luta contra a intolerância religiosa, contra o racismo estrutural e pelo direito a cidade.
Ser congadeira/o é nascer sabendo que possui uma história, que possui uma tradição e que ela precisa permanecer. É carregar desde pequena/o uma responsabilidade, e entender cada vez mais essa mesma responsabilidade ao se desenvolver. É parar sua rotina para se dedicar aos preparativos da festa, é ter uma família congadeira e ter orgulho de fazer parte dela. É, principalmente, entender que muitas conquistas atuais só foram permitidas graças a congadeiras e congadeiros no passado, e não ao poder público municipal.
Como mulher negra e congadeira, me volto para as minhas semelhantes e tento pensar nessa trajetória de mais de 100 anos a partir de suas perspectivas. Olho para as minhas matriarcas, olho para as minhas madrinhas, olho para as companheiras de bandeira, tento entender suas trajetórias individuais, suas trajetórias dentro do Congado, o peso que possuem e as funções que ocupam. Em todo o lugar eu vejo as mulheres, em todos os rituais eu vejo as mulheres, vejo mulheres em funções específicas, vejo mulheres driblando obstáculos. Portanto eu me pergunto: o que é ser uma mulher congadeira? O que é ser uma mulher negra congadeira? Qual o papel das mulheres negras no Congado?
Para além de suas funções
São matriarcas, capitãs, madrinhas e bandeireiras. São cozinheiras, gungueiras, caixeiras e patagomeiras. São as bisavós, são as avós, as mães, as tias e as irmãs dos congadeiros, são o alicerce de uma tradição de mais de 100 anos. Sem elas a festa não se inicia, sem elas a festa não se mantém, sem elas a festa não finaliza.
Na sociedade ocupam funções de “pouco valor”, são as ambulantes invisíveis nas praças e nas calçadas, são as faxineiras nas empresas de grande porte, são as empregadas doméstica dos ricos do Centro, são as feirantes, as terceirizadas da Universidade Federal de Uberlândia, são as que possuem uma jornada tripla se dividindo entre os cuidados com os filhos, estudos e trabalho. Porém no Congado são a realeza, são rainhas, são princesas e são flores, ostentam coroas, seja de pano ou seja de flores, embelezam com seus cantos, com suas danças, coordenam ao som dos apitos e dão graças com seus instrumentos.
Nossas crianças, as sementes do Rosário, são elas que geram, zelam e educam. Com muito amor, carinho e orgulho lavam, passam e vestem nos miúdos a primeira farda, e com muita fé, força e persistência os acompanham no primeiro cortejo. Lhes ensinam a cantar, a dançar a tocar, a andar com o corpo fechado e a desviar dos perigos dos caminhos que não podem ser vistos. Ensinam que congadeiro tem história e que é um sujeito de direitos, que ele é dono da cidade e de seus sonhos.
As lições do Congado se tornam lições para o dia a dia, a paciência, o respeito para com os mais velhos, o orgulho pela cor preta e a busca pela sabedoria são virtudes que só mulheres do Congado podem transmitir. Nas memórias de um congadeiro sempre se manterão vivas as figuras de uma matriarca e de uma madrinha inesquecíveis, que cumprindo a função a qual foram designadas, contribuíram na sua formação social, cultural e espiritual. Na minha memória se mantém viva a figura de Dona Abadia, matriarca do Terno Sainha, com quem tive a oportunidade de conviver mesmo por pouco tempo. O seu cuidado com os seus soldados até o fim de sua vida sempre me admirou e me inspirou a ser um ser humano que estivesse sempre em prol do outro.
Não posso me esquecer de dizer que são mulheres que carregam como sobrenome a palavra desafio. Desafiar as tradições dentro do próprio Congado, que as colocam somente em um determinado lugar, é um reflexo das lutas que travam nessa sociedade machista e racista. Elas provam a cada festa que podem sim bater com a gunga no chão que podem sim tocar uma caixa, um chocalho ou uma patagoma, e que podem sim carregar e honrar um bastão.
Portanto, pedindo licença para as minhas mais velhas, dedico a todas as mulheres negras congadeiras as graças, as conquistas e os triunfos dessa tradição, que resiste há mais de 100 anos devido suas lutas e suas conquistas. Mulheres congadeiras fazem do Congado o seu lar, sua obrigação, o sentido para a sua vida e seu campo de resistência, e assim como as práticas e rituais, essa resistência é passada de geração em geração.
Acredito que, enquanto comunidade congadeira, não devemos manter as mesmas práticas que essa sociedade excludente mantém. Não devemos permitir que as mulheres congadeiras sejam invisíveis dentro do próprio Congado, não devemos permitir que as mulheres congadeiras sejam esquecidas dentro do próprio Congado e não devemos permitir que as mulheres congadeiras sejam desrespeitadas dentro do próprio Congado.