“Burra e feia”. Assim falou o racista

Estava com uma amiga branca tomando uma cerveja no bairro onde moro no domingo a noite – 09/11/2014. A mesa da frente tinha quatro meninos, três negros e um branco com uma camisa identificando que era estudante de odontologia, que chegou no bar dirigindo uma Hilux. Convidaram-nos para sentar com eles. Insistiram. Fomos. “Não custava nada”. Custava e custou muito. Não sei precisar o momento exato que começamos a falar sobre política. Eleições, claro. O assunto que ainda está quente. “Eu votei em Aécio”, falou o estudante branco de odontologia que dirige uma Hilux. Obviamente, o confronto foi imediato. E o que era para ser uma paquera se transformou numa sessão de xingamentos. Da parte dele, que fique bem claro. Os amigos negros falaram que votaram em Dilma. Ele xingou os amigos negros de burros. “Só vota em Dilma quem é burro, ignorante, sem estudo”. Argumentei que dos 58 reitores que existem no Brasil, 54 apoiaram Dilma. Ele perguntou o que era um reitor. Mas antes que eu pudesse responder ele disse “você é burra e feia”. Ignorei e continuei falando com outros. Ele repetiu “burra e feia”. “BURRA E FEIA”. “B-U-R-R-A E F-E-I-A”. Eu era burra e feia, mesmo sendo ele a pessoa que não sabe o que é um reitor. Minha amiga, que é uma mulher branca de cabelo liso, saiu em minha defesa. Ele olhou para ela e disse “não se preocupe, isso não é com você”. Mesmo ela falando a mesma coisa que eu falava. Quando ele viu que a violência dele não estava surtindo o resultado esperado disse: “e esse cabelo? Tem uma tesoura ali no meu carro pra você cortar”. Levantei e fui embora.

Não é que eu nunca tivesse escutado isso antes. Já ouvi a mesma coisa diversas vezes de diversas formas. Algumas sutis e outras nem tanto. Porém, admito que ter um dedo empunhado na minha cara, gritando “BURRA, FEIA E CABELO DE FUÁ” desatou meu peito em um sofrimento diferente dos outros que já senti. Não é que eu ache que ele tenha razão. Não tem nada a ver com isso. O problema é que esse dedo erguido simbolizou um trator que pretendia destruir toda uma construção pessoal e coletiva de empoderamento. Querer cortar o meu cabelo reflete a vontade de cortar minha voz, minha presença, meu direito de ser no mundo. O constrangimento que passei é incomensurável. E eu que tenho respostas e argumentos para tudo e para todos não dei conta de dizer nada. Levantei e fui embora. Chorei depois. Esse momento de plena materialização de um discurso opressor causou em mim uma dor tão grande principalmente porque é uma dor coletiva. É minha. Mas é também de todas as mulheres negras que sofrem racismo todo santo dia. Não é um fato isolado.

O sentimento que tenho agora é de orgulho da coragem que eu tive em assumir o cabelo crespo. O meu cabelo incomoda, ser uma mulher negra que senta em uma mesa de bar e fala sobre política incomoda, principalmente porque o meu comportamento e a minha imagem formam opinião. A nossa imagem forma opinião. E os racistas de plantão morrem de medo das pessoas negras empoderadas porque causamos fissuras nessa ordem social estruturada através do capitalismo, do patriarcado e do racismo.

Sou uma jovem negra de alta escolaridade. Sou assistente social formada em uma universidade pública e era uma das poucas mulheres negras no mestrado. Sou uma mulher independente financeiramente desde muito cedo. Tenho um bom emprego e um bom salário. Mas nada disso me impende de sofrer racismo cotidianamente. Nada disso me impediu de ser chamada de feia de burra por um racista em uma mesa de bar. Nada disso me impediu de sofrer violência. Imagina o que acontece com as mulheres negras da periferia que são ainda mais invisibilizadas.

O racismo brasileiro, aquele produzido e reproduzido através do mito da democracia racial, impele a sociedade a acreditar que o racismo foi superado. Que a situação que eu passei é coisa da minha cabeça ou é coisa da cabeça de uma pessoa “deseiquilibrada”. O menino é louco, disseram alguns. Não existe loucura no racismo. O que existe é um conjunto de estratégias extremamente eficazes de dominação e exploração e um mecanismo extremamente inteligente que age para destruir a psique e a subjetividade das pessoas negras, em especial as mulheres. Dentro da lógica racista eu não tenho o direito de existir. O meu cabelo crespo muito menos.

Entretanto, há resistência, há solidariedade e há braços. São tempos difíceis, mas, sobretudo, são tempos de lutas. O que eu posso dizer para este racista, e todos os outros, é que eu continuarei existindo e muito. E o meu cabelo também. E nem ele e nem todo o empoderamento que conquistei a duras penas será cortado. Continuarão incomodando você e toda a ideologia racista que você sustenta. O meu cabelo e toda a memória, ancestralidade e força que ele representa continuará sonhando com outra ordem social.

Sou o tipo de feminista que não fala sobre suas experiências pessoais publicamente. Seja sobre amor ou sobre dor. Prefiro discutir a partir de teorias, por mais que acredite que a experiência vivida por todas nós é um elemento crucial do processo de empoderamento e precisa ser visibilizado. Mas são experiências tão sofridas que eu preferia ficar na minha zona de conforto de não expor as minhas feridas. Quebrei o protocolo e falei sobre mim e sobre uma das experiências que exemplifica a dor que enfrento há cerca de dois anos quando finalmente decidi parar de me embranquecer e me afirmar como uma mulher negra numa sociedade racista e patriarcal. Fiz isso porque acredito, com todo o calor do meu coração, que o pessoal é político.

Imagem destacada: Flor da cor

38 comments
  1. Oi Nathalia, ao ler o seu relato eu consegui sentir a sua dor e me vi um pouco no seu lugar, pois durante as eleições passei por situações bem parecidas, mas não a ponto da pessoa me ofender pelo meu tom de pele, foi inaceitável o que esse filhinho de papai fez com você, e acho que no seu lugar teria a mesma reação, me levantaria e iria embora. Mas não fique remoendo esse momento na sua cabeça não, bola pra frente, pense em tudo que você já conseguiu conquistar, na pessoa de bem que é, e tenho certeza que devem existir pessoas que lhe admiram muito. Você não tem problema nenhum, pelo contrário, quem deixou claro que tem graves problemas de personalidade foi esse “ser” que não sabe controlar seus emoções, a arma do ignorante que não tem argumentos lógicos para responder a uma outra opinião é a ofensa, e eles sabem justamente o ponto onde devem tocar para desarmar o outro. Mas o problema é todo dele, o mundo ensina e Deus é justo, tenha certeza disso, lá na frente ele irá sentir o peso da sua soberba e do seu racismo. Abraço!

    1. Oi, Nathália. enquanto lia o seu texto, me veio uma imagem de toda a cena, como se eu também estivesse presente ali…me imaginei no seu lugar…muito triste ! Fica claro como as pessoas que são racistas conseguem encontrar qualquer lacuna para vomitar o seu racismo. E é assim mesmo, você fica sem ação, sem argumentos porque é inesperado e sem motivo nenhum.

      Ontem mesmo, eu estava tentando atravessar a avenida que fica próxima da minha residência e, de repente passou um carro em alta velocidade por mim e um rapaz que estava dentro gritou: “Ô negona feia !” E em seguida falou um palavrão….naquele momento não tive reação nenhuma, apenas continuei tentando atravessar a avenida, mas depois entrei numa reflexão rasa sobre o que aconteceu. Detalhes: Eu estava bem vestida, com uma blusa e uma saia muito bonitas. Outro detalhe: sou baixinha (1,59m), magrinha (45 kg) e cabelo comprido/liso e aparento ter 16 anos (todos falam)…mas ele quis me ofender, me chamando de “negona”…
      Por que eu me descrevi? Para mostrar o quanto incomodamos, mesmo quando estamos de boca fechada, bem vestidas ou simplesmente quando estamos querendo atravessar uma rua…sempre percebo que quanto mais fico produzida, mais bem cuidada, isso também incomoda. Tudo incomoda….imagina uma negra com mestrado, bem articulada e inteligente?

      Estou no mesmo caminho, estudo 3º período de fisioterapia. Não podemos baixar a cabeça. Temos que ser fortes para passar por cima de tudo isso, todos os dias !
      Grande abraço.

  2. Ô mulher, lamento a dor e o sofrimento, mas admiro a sua força e a coragem de encará-lo com dignidade e se rebelando contra o script de uma sociedade racista e patriarcal. É dolorido e arbitrário, mas, para muitas pessoas (os membros das minorias), o simples fato de existir é um ato de resistência política. Triste mundo, não é? Mas a dificuldade dá mais gana à luta e mais alegria a cada pequena vitória!
    bjus com carinho e admiração,
    Ester

  3. Nathalia, não te conheço, cheguei aqui através de uma postagem de alguém no Facebook mas queria te dizer que de algum modo gostaria de passar alguma energia positiva para que você é todos os outros que sofrem preconceito aguentem firme e se rebelem quando necessário. Sou homem, branco, de classe média alta, estudei em escola particular, heterosexual. Tenho certeza de que nunca sofri e provavelmente nunca sofrerei algo sequer perto de se chamar de preconceito. Mas tento ao máximo me colocar no lugar de quem sofre e ajudar em algo. Passo sempre Pros meus alunos o documentário blue eyes. Vc conhece?

    1. Oi Roberto, muito obrigada!
      Obrigada pela energia! Ela já chegou por aqui!
      Fico muito feliz quando escuto de pessoas que estão em privilégio social o reconhecimento das desigualdades e do preconceito que certos grupos populacionais sofrem. É importante essa crítica para que possamos conquistar mentes e corações.
      Eu não conheço esse documentário. Vou procurar! Muito obrigada pela dica!

      Um beijo

  4. Nathalia, já passei por várias histórias assim, inclusive com a família do meu ex-marido. Acredite, esse foi um dos motivos que fizeram com que eu me divorciasse dele. Ele, assim como a família (todos de cabelos lisos) não aceitavam meu cabelo crespo. E eu hoje com 30 anos, também sou formada, tenho mestrado em educação matemática (As pessoas acham incrível eu ter mestrado, se eu fosse loira dos azuis, seria tão impressionante?) não deixo mais ninguém me chamar de feia, nem de burra, nem fazer qualquer chacota por eu ser negra. Chega de chorar depois, chega de fingi que não percebi, sabe o viva a loucura do comentário acima… pois é… posso até chorar depois mas grito RACIISSSTAAA NÃO PRECISA ME OFENDER SÓ PORQUE EU SOU NEGRAAA e saio ofendida, saio mas deixo o racista lá todo constrangido. E por fim, força, porque sei que isso dói, ah como dói!

    1. Valéria, incrível como essas histórias se repetem. Realmente a experiência das mulheres, em especial das mulheres negras é essencialmente uma experiência coletiva.
      Gostaria que racismo não batesse na minha porta todos os dias e não fosse tão doloroso.
      Bom que podemos fortalecer umas as outras!
      Obrigada e um beijo!

  5. Quanta força, quanta coragem… Minha eterna admiração por você, minha amiga! Me encorajo na sua coragem… Me emociono e partilho da sua dor! Como dói!!! O burra e feia está doendo em mim, o cabelo de fuá também! Que tenhamos força de lutar por nós, pelos nossos, pelos outros.

  6. “Te han sitiado coracion e esperan tu renuncia. Los únicos vencidos, coracion, son los que no lucham. No te entregues coracion libre, no te entregues no!” (Mercedes sosa) . Ofereço-te um pouco de música para os dias difíceis e solidarizo-me a ti! Bj … Seguiremos em marcha … Você a frente, sempre.

  7. Parabéns pelo texto, pelo empoderamento e pela inteligência, Nathália!
    Teu black tá lindo! Da próxima vez, vira o copo de cerveja na cabeça da figura. Porque paz de espírito e educação não funcionam o tempo todo…e viva a loucura! 😉

    1. HAHAHAHA Obrigada Luciene! Prometo que da proxima vez a cerveja rolará na cabeça dos racistas! E um viva a loucura! =)

  8. Que textoo me arrepiei até, porque diz muito (muito mesmo) sobre o que já passei. A gente incomoda em todo lugar… mas… sabe de uma coisa: eu gosto. Eu gosto de incomodar. E foi o que você fez, deixou o playboyzinho no chão. Você tirou ele da zona de “conforto”. Eu gosto de tirar essas pessoas da zona de conforto, assim elas (talvez) param para pensar um pouco.

    E sobre seus estudos, fiquei muito feliz, tu é um exemplo divino de pessoa. Eu me identifiquei muito apesar de não ter faculdade, pois estudei em escola pública no fundamental, no ensino médio como bolsista em escola particular de tradição e, depois, fui estudar no IFSP, o Instituto Federal de São Paulo, minha próxima meta é incomodar na USP. E não vai doer, porque tenho calibre suficiente para aguentar mais uma, HEUHEUHEUH!

    Que lindo exemplo você é *______*

    Meu respeito eterno por ti.

    E, ah! Queria gentilmente deixar aqui o endereço do meu blog. Lá eu falo um pouco das meninas negras, feministas e alternativas (da cena underground, como os góticos, metaleiros (headbangers) ou punks). Infelizmente ainda sofremos muito preconceito, as vezes até pela própria tribo. As modelos alternativas, por exemplo, dificilmente são negras. E quero mudar essa visão de que nós não podemos ser estilo que queremos. Enfim, é isso. Eu não tô fazendo publicidade não (credo), só quero que as meninas negras sejam reconhecidas também.

    O link: http://madessy.blogspot.com.br

    Enfim, amo o blog e quando crescer quero ser que nem vocês aqui! *____*
    Um grande beijo.

    1. Olá Madessy!
      Muito obrigada pelo carinho!
      Mas saiba que só consigo passar por essas situações porque tem pessoas como vc que me fortalece. Assim, fortalecemos umas as outras!
      Irei olhar sim o seu blog! Não há problemas em fazer propaganda!
      Lhe desejo força e espero SIM que vc incomode muitoooo na USP, que cá entre nós é bastante conservadora.

      Um beijo e muito obrigada!

  9. Olá, tudo bem? Sou estudante de jornalismo e estou fazendo meu trabalho de conclusão de curso (TCC) sobre violência contra a mulher. Será uma série de reportagem, que pretendo entrevistar mulheres vítimas de violência. Já entrevistei a primeira, que foi uma mulher que foi violentada anos, mas que superou de forma incrível todo o ciclo da violência. Achei bem forte esta situação que você viveu e extremamente interessante de ser divulgada, pois muitas mulheres desconhece que é violência SIM. Gostaria de saber se posso usar sua história na minha matéria do TCC e queria o seu contato para uma entrevista, que poderia ser por email. Aguardo seu retorno, muito obrigada Adriana.
    Qualquer coisa meu email é [email protected]

    1. Olá Adriana,
      peço desculpas pela demora em responder.
      Você pode sim utilizar a minha historia. Vou responder também para o seu email!
      Um beijo e muito obrigada pelo apoio!!

  10. sabe, apesar da paulada, ler o seu desabafo me trouxe uma força tão grande!! É como se tivéssemos unidas por teias. A sua força e coragem alimenta a minha força e a minha coragem. Como temos mulheres corajosas nesse mundo!!! HUHU

    1. Que bom Conceição que o meu texto serviu para lhe fortalecer! Retorno mais gratificante não há! beijo grande!

    1. Camila, me sinto muito abraçada!
      E te mando outro abraço e muita força!
      Para transformarmos essa experiência coletiva em luta e resistência!

    1. É verdade, Victoria! Muitas vezes as pessoas nos dizem esse tipo de coisa com apenas um olhar. Estamos juntas!

  11. Tem que ser muito babaca para dizer isso á qualquer mulher, no seu caso além de inteligente é muito bonita, deduzo pela sua foto com esse sorriso lindo. Com esse tipinho imbecil nem perco meu tempo conversando, daria logo um soco no nariz, assim ele aprenderia guardar o racismo para ele mesmo.

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