Carta aberta aos que põem as mãos em cabelos afros

Muito obrigada por se interessarem pelos cabelos da minha filha. Ele é mesmo muito bonito e nós duas gostamos dos elogios. Sim, ela é paciente e não se incomoda em ficar quietinha enquanto o cabelo dela é penteado. Eu penteio o cabelo dela assim desde bebezinha, ela já está acostumada e essa é a única forma de cuidar dos cabelos que ela conhece. Essa rotina de cuidados é parte da vida dela e ela não vê isso como um fardo, muito menos eu.

Tradução de Aline Djokic para as Blogueiras Negras

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Nota da tradutora

*Rory Hadley é branca e adotou Boo, uma menina negra. Rory cuida com muito amor dos cabelos naturais da filha, e criou a página Chocolate Hair, Vanilla Care, onde dá dicas de como cuidar de cabelos afros, além de outras dicas para pais adotivos. Em seus textos, ela usa o termo “baunilha” para se referir à pessoas brancas e chocolate para se referir à pessoas negras. Optei por deixar as expressões como a autora as emprega e fazer a tradução literal delas.

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Caras pessoas que tem, ou venham a ter contato com a minha filha:

Muito obrigada por se interessarem pelos cabelos da minha filha. Ele é mesmo muito bonito e nós duas gostamos dos elogios. Sim, ela é paciente e não se incomoda em ficar quietinha enquanto o cabelo dela é penteado. Eu penteio o cabelo dela assim desde bebezinha, ela já está acostumada e essa é a única forma de cuidar dos cabelos que ela conhece. Essa rotina de cuidados é parte da vida dela e ela não vê isso como um fardo, muito menos eu.

Quando fizer perguntas a respeito dos cabelos da minha filha, não vá enquanto fala, colocando as mãos nele. O fato de eu ser uma mãe-baunilha não lhe dá o direito de se sentir à vontade para tocar um cabelo-chocolate pela primeira vez. Muitas pessoas já chegaram para mim e disseram: “Oooh, eu sempre me perguntei como seria a sensação de colocar as mãos num cabelo desses”, e enquanto falavam, iam enfiando as mãos na minha filha. Ela não é um animal, ela é um ser humano.

Nós ensinamos às nossas crianas que, se um adulto tocar nelas de modo desapropriado, elas devem imediatamente contar isso para outro adulto. Na nossa opinião, toda vez em que um adulto toca numa criana, como se ele tivesse o direito de fazê-lo, ignorando a vontade da criança e sem perguntar pela sua permissãoo, ele está agindo errado.

Veja bem, toda digital de chocolate, geléia ou salgadinho que outras crianas e/ou outros adultos deixam nos cabelos da minha filha ao tocá-los, é uma mancha que se forma em sua dignidade. Ela é pequena, porém tem conscincia de seu direito à privacidade e possui autoestima. Quando você invade o espaço dela, sem que ela o permita, voc está lhe dizendo que ela não tem o controle sobre o próprio corpo. E que o desejo dela, de não ser tocada, é menos importante que a sua curiosidade.

As suas ãos, ainda que limpas, deixam marcas invisíveis.

Se você for educado e gentil, irá perguntar se pode ou não, tocar nos cabelos dela; mas por favor, não se ofenda se ela lhe disser ã “não”. Ela não está sendo mal-educada. Ela simplesmente não tem a obrigação de dar a resposta que você quer ouvir. O corpo da minha filha é propriedade dela e se ela não quer dividi-lo com você nesse momento, por favor, respeite os direitos dela. Não diga que ela está sendo “desobediente” ou “mal-educada” e saia resmungando. Ao agir dessa maneira, voc está indiretamente afirmando que tem direitos sobre uma parte do corpo dela e que ela, dessa maneira, deve algo a você. Ela não deve nada a você.

E não, eu realmente não faço penteados extravagantes nos cabelos dela, só para chamar a sua atenço. Eu os faço para ela, para ajudá-la a desenvolver uma relação de amor com o próprio cabelo. Para que ela cresça amando a si mesma, assim como Deus a fez. Eu espero, através disso, poder diminuir as chances de um dia, ela passar a achar que, seja necessário mudar suas caracteristicas físicas para satisfazer os ideais de beleza de outrem. E por favor não me diga que, se eu não quisesse que colocassem as mãos nos cabelos dela, eu não faria esses penteados que praticamente exclamam “olhem pra mim, coloquem a mão em mim”. Não culpe a vítima pela sua indiscrição ou por sua falta de auto-domínio.

Se voc é um/a professor/a, por favor preste atenção que, o primeiro dia de aula é geralmente um dia muito intimidante. Em dias como esse, mas também em todos os outros, fazer do cabelo dela algo extraordinário causa extremo constrangimento, que só tende a aumentar, quando outros professores, pais ou alunos, são convidados para dar um pulinho na sala de aula e colocar as mãos nos cabelos dela. Ela é tão somente mais uma dentre tantas outras crianças-chocolate da sua escola e fazer da sua aparência um acontecimento, só vai reforçar a impressão de que ela é diferente.

Quando eu estiver presente, eu mesma me encarregarei de cuidar desse assunto, mas a partir do momento em que eu deixo a minha filha aos seus cuidados, eu espero que voc a proteja durante todo o dia. Permitir que os coleguinhas coloquem as mãos nos cabelos dela ou brinquem com suas xuquinhas, não só é prejudicial à concentração deles, como também é uma agressão, uma espécie de violação para minha filha. Eu sinceramente quero acreditar que voc fará o possível para evitar que isso aconteça. O fato dela não estar sendo agredida fisicamente, não quer dizer que o caráter dela não esteja sendo ferido.

Eu me lembro de quando estava grávida e do quanto me irritava, quando as pessoas colocavam a m‹o na minha barriga sem a minha permiss‹o. Eu sei como é difícil para as pessoas admitirem que elas passaram dos limites da boa educação, por terem sido curiosas demais. Ainda assim, jamais alguma delas questionou o meu direito de querer que me perguntassem antes de colocar a mão na minha barriga.

Eu, porém, sou adulta. A minha identidade já está formada, assim como a minha autoestima. Eu sei expressar meu descontentamento de maneira construtiva. As crianças, no entanto, ainda estão aprendendo qual o lugar delas nesse mundo. Elas se sentem inseguras quanto a si mesmas, e se você ultrapassa algum limite, elas começam a colocar o limite em dúvida e não você.

Para concluir, eu peço que essa carta seja bem recebida, e que quem tenha agido das maneiras citadas acima no passado, reflita bem antes de agir igualmente no futuro. Para aqueles que nunca tiveram experincia com cabelos-chocolate (negros), essa pode ser uma ótima oportunidade de ter acesso a esse nosso lindo universo. Às pessoas que recentemente acolheram uma criança com cabelo-chocolate (negros) no seio de sua família, eu aconselho a respeitarem o espaço da criança e a serem gentis e educadas com suas perguntas e curiosidade. Seja como for, lembre-se que voc está ajudando a construir o caráter do adulto de amanhã, e se Nós não respeitarmos os corpos das nossas crianças hoje, como poderemos esperar que eles se respeitem no futuro?

Muitas bençãos,

Rory*, mãe de Boo.

Texto originalmente publicado no site Chocolate hair, Vanilla care – Natural haircare for kids, adoption and family lifeLeia também
brochura com informaçes sobre Rory e Boo e conheça seu perfil do facebook e seu canal no YouTube.

Imagem destacada – Alexandra Ravelli e Jade, Soul Vaidosa.

6 comments
  1. Texto maravilhoso. Não sou negra, mas tenho cabelos encaracolados e também me sinto invadida quando querem tocar nele. Fico muito brava porque além de invadir meu espaço pessoal sem a minha permissão, a pessoa, que obviamente não tem cabelos cacheados, não sabe como passar as mãos nele sem desmanchar o penteado. Resumo da história: eu fico raivosa e descabelada e a pessoa acha que está me elogiando. Já fui até apelidada de ‘fresca’ por não deixar que as pessoas passem as mãos no meu cabelo. Dá pra acreditar?

    Além disso, os conselhos sobre limites pessoais e a descrição da sensação de violação pessoal contida no texto serve muitíssimo bem para qualquer tipo de agressão, especialmente a sexual. Aquela cantada, passada de mão ou outras ousadias absurdas de muito mau gosto pelas quais eu, você e todas as mulheres já passamos – e detestamos.

    Parabéns pelo texto, mas principalmente pela atitude. Não deixe de zelar pela sua filha.

  2. Não sou criança, mas me identifiquei. Sinto-me “invadida” quando tocam no meu cabelo, até pq invisto tempo cuidando dele, e meu cabelo não é do tipo q volta depois de uma intervenção rsrsrsrs. Eu só toco nele quando o lavo!!!

  3. O interessante é que os conselhos dela valem para evitar cometer todo tipo de abuso. É incrível como é necessário ensinar às pessoas a ter respeito umas às outras. Se em geral tivessem um pouco de empatia, se se colocassem no lugar das pessoas que são alvo desses abusos, talvez não seria preciso ter que dizer tais conselhos de forma tão direta.

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