Coisa mais linda e a invisibilidade da mulher negra

De uma forma abrangente a série Coisa Mais Linda (2019) aborda pautas muito importantes relacionadas a vivencia da mulher e o que é ser uma no Brasil em meados da década de 50. Feminismo,
violência e até o feminicídio é trazido de forma explícita e direta no enredo da série,
entretanto a abordagem ao racismo e as outras formas de opressão sofridas por diferentes
grupos de mulheres não foram trazidas com a mesma urgência, o que soa o discurso um
pouco vazio, artificial e preocupante.

A serie conta com quatro mulheres que exercem os papeis principais e entre elas há
somente uma mulher negra: Adélia.

Adélia é uma mulher negra e se formos observar de uma forma crítica é possível
perceber que o papel exercido por ela é o mais comum entre as pessoas negras: moradora
do morro, tem uma filha pequena, de início é mãe solteira e trabalha como empregada
doméstica. Efetivamente esse perfil condiz com a realidade de uma mulher negra da época.

Contudo é notório a forma como a voz de Adélia é silenciada durante a série e como
ela estava sempre em degraus abaixo em relação aos outros personagens. Sempre
obedecendo e agindo de maneira retraída, a personagem nunca se destacou de forma
grandiosa como as outras personagens. Até aqui a gente precisa entender que a luta de uma
mulher negra vai além das lutas por igualdade de gênero, pois além dessa precisamos lutar
pela igualdade racial, o que torna o processo extremamente mais complexo e doloroso.
De uma forma muito clara a série apresenta a diferença do que é ser uma mulher branca
que pertence a alta burguesia e uma mulher negra moradora do morro. As lutas são
diferentes: enquanto Malu lutava por independência e uma vida livre do patriarcado, além
desses, Adélia buscava igualdade racial, alfabetização e valorização enquanto uma mulher
negra em uma sociedade machista e racista.

É nítido a forma como Adélia continua em posições subalternas quando conhece
Malu, estabelece uma sociedade e coloca em andamento a ideia do Clube de músicas. Os

serviços mais baixos são destinados a Adélia, enquanto Malu, por sua vez, é quem decide,
resolve e vai atrás de todas as coisas.

O grande problema é que em nenhum momento a serie apresenta “soluções” para o
racismo como faz com o machismo. Em todo o tempo a gente percebe que, ao se impor,
as mulheres brancas ganham destaques na sociedade, enquanto a única mulher negra
~como personagem principal~ continua nas mesmas posições e sofrendo as mesmas
opressões desde o início. Mesmo se tornando sócia e parceira de Malu, Adélia segue se
submetendo a situações de humilhação e continua obedecendo as relações de poder de
forma indireta como acontece na sociedade atual.

Durante muito tempo e ainda nos dias atuais, o feminismo atua de uma forma
universal e excludente esquecendo que mesmo dentro do “coletivo mulheres” há também
formas de opressão e dominância entre as mesmas.

Partindo desse ponto, a gente consegue ou deveria entender que o movimento não
pode tratar tudo como sendo algo universal, pois essa universalidade gera exclusão e
seletividade quando trazemos à tona que mulheres brancas fazem parte de uma raça
dominante e que, consequentemente, tem o poder de oprimir mulheres negras, indígenas
ou de outras raças não dominantes. Sendo assim, se faz necessário observar e compreender
as diferenças para que os problemas sejam analisados em igualdade e não sobrepor um ao
outro.

Imagem destacada: Pathy Dejesus, Maria Casadevall, Mel Lisboa e Fernanda Vasconcellos protagonizaram a 1ª temporada de Coisa Mais Linda (Fonte: Reprodução)

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