Como é ser uma professora negra?
“[…] eu só me salvei pela educação,
porque o preconceito e o racismo,
ele mata, e a educação salva…”
Diva Guimarães
Assistir à emocionante entrevista que a professora Diva concedeu ao ator e apresentador, Lázaro Ramos, fez-me pensar na minha trajetória como professora. Vieram à tona, vários questionamentos, pensamentos e sentimentos que me incomodam há muito tempo. E uma forma de apaziguar o que em mim transitava entre gritos abafados e silêncios ensurdecedores, foi escrever. O preconceito e o racismo matam, disse-nos a professora. Eu poderia gritar: o racismo tenta minar nossos sonhos, mas meus gritos seriam abafados pela fala: “vitimismo”. Eu poderia concordar que a educação salva, mas de dentro de mim uma voz sussurraria: “a que preço”.
Quando optei por fazer uma licenciatura, o objetivo era descobrir escritores negros, para além da tríade: – Cruz e Souza, Machado de Assis e Lima Barreto que reverencio imensamente, e especialmente, escritoras negras, para apresentá-los aos jovens e especificamente aos jovens negros, com o intuito de valorização da autoestima do negro e de ampliar suas perspectivas no âmbito profissional. Ao término da graduação, me foram apresentadas, como opções de monografia a obra da escritora Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo: diário de uma favelada e a da escritora Bernardina Salústio, A Louca de Serrano. Ambas as escritoras me seduziram por apresentarem traços de ruptura nos cânones de: gênero, literário e étnico em seus respectivos países, Brasil e Cabo-Verde. Eu queria poder dizer aos meus alunos que podiam ser o quisessem, inclusive professores. E é o que sigo fazendo, dizendo.
O maior desafio
No entanto, eu não poderia supor que o desafio maior não viria especificamente com os alunos e sim com meus colegas de trabalho. A primeira questão que se coloca nesse contexto é o da autoridade, recorri ao dicionário Aurélio para compreender melhor esse conceito. Pois bem, autoridade:
1 – Direito legalmente estabelecido de se fazer obedecer.
2 – A pessoa que tem esse direito.
3 – Valor pessoal, importância.
4 – Autorização.
Os colegas de profissão brancos e também os alunos (brancos e negros) não estão acostumados a vivenciar situações do cotidiano com negros em situação de liderança, ou seja, com direito legalmente estabelecido de se fazer obedecer. O que os olhos da sociedade em geral estão viciados em enxergar é a pessoa negra em situações subalternas, exercendo funções que necessitam da autorização de alguém, este normalmente branco.
Ainda dentro desta delimitação está o valor pessoal e a importância, pessoas negras com fenótipos e características mais próximas de um biótipo branco são mais aceitas como agregadoras de valores e na transmissão de conhecimento. Em contrapartida, pessoas negras de pele retinta, que optam, por exemplo, usar seu cabelo de forma natural, são molestadas a todo o momento para entrarem em uma padronização a fim de serem aceitas como pessoas e profissionais.
Eu lecionei em uma escola particular, onde passei por um processo seletivo, incluindo prova de aula, etc. Estava sendo adquirida uma nova unidade e modificações estavam sendo implementadas, entre elas a troca de alguns professores. Tive uma turma de Ensino Médio que me odiava, o professor anterior permitia o uso do celular durante a aula, saídas ao banheiro (passeios pelo corredor) toda hora, carteiras dispostas à vontade dos alunos, entre outras situações… E óbvio que cortei e dosei todos esses exageros. Os alunos começaram a reclamar com os outros professores, como eu tinha total apoio da equipe diretiva, segui fazendo o meu trabalho. Logo fui questionada por determinados colegas que eu estava sendo muito rígida e fui elogiada por outros porque os alunos estavam escrevendo melhor.
Um dia, uma aluna me reportou que uma professora que dava aula depois de mim, havia feito à seguinte pergunta a turma: “essa neguinha sabe mesmo dar aulas?” Depois outros alunos comentaram outras falas dessa mesma professora, acredito que tenha chegado à direção, porque logo foi demitida. No entanto, o que me impactou de fato foi uma conversa na sala de professores, a essa altura eu já havia ouvido muitas falas de cunho racista, até então tinha procurado ignorá-las. Porém nesse momento eu já estava extremamente cansada, cansada de ser, de existir… De ter como a professora Diva disse: “É muito pesado você viver às 24 horas do dia, provando que você é capaz”
Uma professora falou que achava muito estranho as alunas que usavam tranças – eu estava num período de transição com os meus cabelos – porque segundo ela, parecia que nunca dava para lavar direito. Outro professor mencionou que tinha uma aluna que quando tirou as tranças parecia outra criança. A conversa seguia como se eu não estivesse ali. Até que um colega mencionou que aquilo era tudo bobagem era só olhar pra mim e ver como as minhas tranças eram lindas e cheirosas. Aproveitei a deixa para dizer que era incrível como professores que se dizem educadores podiam agir dessa forma com tanto preconceito e racismo e fui explicando o que é racismo, como as crianças sofrem com outras crianças e inclusive com seus próprios professores, etc.. etc… Um deles ainda respondeu dizendo que eu estava exagerando e que não falavam de mim.
Histórias que se cruzam e se acolhem
Saí daquela situação destruída, lembro-me que liguei pra minha mãe e chorei muito, depois liguei para os meus filhos e em seguida para o pai dos meus filhos, que me falou que sua atual esposa fazia parte de um grupo chamado“Intelectuais negras”, explicou rapidamente como era o trabalho e que seria bom que eu fosse para me fortalecer e que teria um encontro exatamente naquele dia, convidei uma amiga e fomos. Quando chegamos, o encontro já havia iniciado, as mulheres estavam em círculo e a professora Janete conduzia. Nesse momento, foi proposto que cada mulher falasse de três mulheres importantes na sua vida, falei da minha mãe, da minha filha e da minha vó. Em seguida, várias mulheres negras falaram de seus trabalhos, dificuldades e pesquisas em diversas áreas, foi maravilhoso! Senti-me acolhida e fortalecida.
O professor e geógrafo, Milton Santos (1926 – 2001) preconiza a questão do racismo na estrutura brasileira, de forma bem categórica, desnudando os meandros que engendram sua base. Em uma entrevista ao jornal Folha de São Paulo, no ano 2000, ele diz:
“A marca predominante é a ambivalência com que a sociedade branca dominante reage quando o tema é a existência, no país, de um problema negro. Essa equivocação é também duplicidade e pode ser resumida no pensamento de autores como Florestan Fernandes e Octavio Ianni. Para eles, entre nós, feio não é ter preconceito de cor, mas manifestá-lo” […] “a chamada boa sociedade parece considerar que há um lugar predeterminado – lá embaixo – para os negros. E assim tranquilamente se comporta”. (Milton Santos, Ética enviesada da sociedade branca desvia enfrentamento do problema negro, 2011: 169-172).
O racismo implícito
Qualquer dificuldade de natureza racista que um professor negro tenha ao ministrar suas aulas, nunca esta dificuldade é concebida como tal. O normativo é registrar que aquele professor não possui domínio de turma, ou que é desequilibrado emocionalmente, que não possui preparo suficiente, questionam a sua formação, enfim, a chamada “boa sociedade” rejeita o negro em situação de liderança. O racismo jamais é uma questão explícita.
O antropólogo, kabelengue Munanga, ressalta em uma entrevista que a historiografia tradicional quer transformar o negro no Brasil em um ser “errante”. Os dicionários da Língua Portuguesa definem errante como aquele ser que vaga, um nômade sem destino e, ainda, que se desvia do caminho da sensatez, do bom senso. Um povo sem história, isto é, sem passado, presente e futuro. “O negro só pode ser protagonista da História do Brasil ao mostrar que ele faz parte dessa história não apenas como força muscular humana, mas como cérebro, resistente apesar do rolo compressor da escravidão, que deu sangue, deu cultura ao Brasil e, portanto, sem ele a história do Brasil não teria a configuração atual”, defende.
Desistir não é uma opção
Essa reivindicação do Munanga referente ao negro, como cérebro resistente, legitima a necessidade de nós negros termos que provar o tempo todo que somos seres pensantes, capacitados e qualificados nas profissões que escolhemos atuar.
A primeira negra Ph.D. em física no Brasil e professora do Ita (Instituto tecnológico da Aeronáutica), Sônia Guimarães, em entrevista ao programa Pedro Bial ratifica:
“A minha autoridade tem que ser dita a cada dia, a cada minuto, a cada correção, a cada nota baixa…”
E é óbvio que as interlocuções não cessam sobre as questões que permeiam o exercício de ser uma professora negra. Sofro racismo continuamente em vários espaços da sociedade, mas na escola, que é o local privilegiado de formação do indivíduo, que possui um contexto plural e pode atuar na promoção da igualdade de oportunidade de forma efetiva, eu me recuso a não insistir pela mudança desse quadro. E esse é o viés, sob a minha perspectiva do que é ser uma professora negra, não desistir.
Referências
• Entrevista da professora Diva Guimarães ao programa Espelho: https://www.youtube.com/watch?v=oGRoRHtHv6Q
• Intelectuais negras, disciplina oferecida na UFRJ, com o objetivo de: Inspiradas pela perspectiva da “pesquisa ativista”, apostar nas articulações entre academia, escola e movimentos sociais, como potencializadoras da afirmação e autonomia de nossas muitas primeiras pessoas.http://negrasintelectuais.wixsite.com/intelectuaisnegras
• Entrevista da professora Sônia Guimarães ao programa, Conversa com Bial: https://globoplay.globo.com/v/6727823/
• Entrevista do professor Munanka:
http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/7169-a-transformacao-do-negro-em-ser-errante
Imagem destacada: arquivo pessoal, Pedro Lopes