Às vezes me pego recordando minha infância e chego a conclusão que minha vida escolar tinha tudo pra ser um tanto quanto traumática e logo penso como foi difícil ser negra dentro da escola. Um ambiente que não aceita diferenças, que o diferente é visto como desigual, em que eu era freqüentemente hostilizada pelas outras crianças. A exclusão era fato, xingamentos, apelidos, “musiquinhas” eram rotineiros. O cabelo? Esse era alvo fácil, era comum me chamarem de “cabelo ruim” “ neguinha do cabelo duro” “cabelo pixaim”.
Enfim, ir para escola se tornou um ato de coragem, principalmente porque toda essa minha dor era silenciada, quando percebi que reclamar para a professora não adiantava nada, só me restava então chorar para minha mãe em casa. Minha negritude ascende da parte do meu pai do qual eu nunca tive nenhum contato, a família toda por parte de mãe inclusive ela própria é branca. Nunca tive um referencial negro dentro de casa, melhor dizendo em lugar nenhum, todas minhas amigas do condomínio eram brancas dos cabelos mais lisos possíveis. Cresci assim, sempre cercada por pessoas brancas que eu considerava como ideal de beleza, os cabelos “perfeitos”, eram essas as pessoas mais bonitas.
Os anos se passaram e cursando pedagogia e estudando os fenômenos de racismo no âmbito escolar, percebo que isso não era apenas um drama particular mas sim de muitas crianças negras que sofrem as consequências desse racismo velado em nossas escolas. O racismo é um assunto instigante por natureza, e quando associado ao âmbito escolar, gera ainda mais questões que precisam ser esclarecidas.
É preciso antes de tudo, compreender que a escola é o lugar que contribui fundamentalmente na formação do sujeito em todos os seus aspectos, inclusive no que diz respeito a identidade racial e todas as suas problemáticas. A escola é um espaço privilegiado porque promove ou deveria promover a igualdade dentre as diversas culturas e raças, possibilitando o convívio entre pessoas diferentes. As práticas discriminatórias que vão de encontro a esse conceito de igualdade, são camufladas por piadas e brincadeiras que de tão corriqueiras se tornam normais e nem causam mais espanto aos nossos ouvidos. Mas são justamente essas piadas que trazem a ideia de inferioridade racial que tentamos combater.
Entendo a escola como um espaço de socialização com pessoas de diferentes culturas, valores, características físicas; enfim um ambiente multicultural. Contudo, é possível observar uma falha por parte da escola que não abre espaço para a produção de diferenças identitárias. Ao observar relações do cotidiano escolar marcada pelo racismo, analisando algumas consequências da discriminação racial, percebe-se a dificuldade dos educadores em aceitar as diferenças e a compreensão de identificar as raças pelo mesmos. Uma reflexão cuidadosa a respeito reforça a importância da ação de educadores no combate às desigualdades no ambiente escolar e sinaliza possíveis caminhos para a realização de um educação antiracista, o que certamente colaborará para a transformação deste quadro de racismo na sociedade mais ampla.
Essa não diferenciação de “brincadeiras” racistas por parte do professor faz com que os alunos discriminados tenham um desempenho baixo por não terem estímulo, que deve ser de forma direta e clara para que o aluno possa entender que também é valorizado mediante tantas situações racistas. É preciso compreender também que os alunos demonstram que não gostam dessas atitudes de forma explosiva ou de forma silenciosa, quem sofre com essas agressões dificilmente vai passar indiferentemente por isso.
Um dos aspectos que pude perceber na etnografia é que algumas crianças negam a primeira vista esse problema, mas em diálogo acabam afirmando suas angústias. Outro ponto também é quando se trata de identidade, o cabelo apresenta uma dificuldade de construção da identidade negra em meio a uma sociedade com um padrão de ideal de brancura. Pelo fato do cabelo ser o alvo número um de “brincadeiras” e apelidos, a criança negra passa a não gostar de um dos símbolos mais fortes da identidade negra. Muito além do caráter estético o corpo e o cabelo tratam do caráter simbólico e identitário da cultura negra. Partindo da ideia que a cultura negra é construída não só a partir do olhar que o negro tem de si, mas também da relação que ele tem com o olhar do outro sobre ele, não só o que é refletido no espelho importa, mas a sociedade também atua como um espelho.
Hoje já na universidade, na área da educação e me reconhecendo como mulher negra, ressalto a importância da escola na afirmação da auto identidade positiva e na construção da auto estima da criança negra, para que ali desde cedo ela aprenda apreciar sua imagem, reforçar a beleza de sua cor, de seu cabelo e suas habilidades e não manifeste o desejo de pertencer ao grupo branco, rejeitando assim suas características racias.
É pra isso que lutamos… Para que a escola não seja um mecanismo de discriminação racial.
Imagem de destaque: Alex E. Proimos/ Creative Commons.