No quinto e último texto do especial Convergências Diaspóricas SSA-NYC, Daisy Santos divide detalhes de sua experiência como voluntária do Festival AFROPUNK em Nova Iorque, conta um pouco da história do evento e faz algumas reflexões sobre consumo e representação.
Quase toda pessoa negra e jovem, que ama cultura pop, já ouviu falar do Festival AFROPUNK. Mas, vocês sabem de onde ele vem? O AFROPUNK, enquanto evento, surge a partir de uma produção audiovisual de mesmo nome. Em 66 minutos, o documentário pauta questões relacionadas à identificação racial e a cena punk nos EUA, ao acompanhar a trajetória de quatro pessoas que dedicaram suas vidas ao estilo de vida punk rock; e, não por coincidência, essas pessoas passam por situações conflituosas que envolvem pessoas de cor em uma comunidade majoritariamente branca. Os entrevistados falam sobre uma visão restrita de como o negro deve se comportar e a não aceitação dentro da comunidade negra do punk negro. Mas afirmam também que os negros sempre ditaram estilos, inclusive musicais e isso se aplica também ao punk rock. Ao final do documentário, há uma conclusão geral por parte dos entrevistados de que ter uma aparência diferente (no caso, diferente do que se espera de uma pessoa afro-americana) não os torna menos negro. Durante os making-offs das entrevistas, um dos personagens diz que não consegue lembrar de uma banda punk que não tenha um negro integrante; então ele coloca que a grande questão é: “qual das bandas era toda branca?”. E só consegue lembrar do nome de uma banda.
Fruto do documentário, o festival surgiu em 2005, criado por James Spooner (criador do documentário) e Matthew Morgan, no Brooklyn. Surgiu primeiramente como um ponto de encontro entre os Punks negros que se sentiram representados no documentário. Um fórum do filme na internet foi a primeira conexão, que deu origem ao festival inaugural com curadoria de Spooner e Morgan. Ao longo dos anos, o festival passou por diversas mudanças, dentre elas a saída de James Spooner da organização do festival em 2008, que passou a contar com os investimentos do Matthew Morgan. O festival começou a ser um evento pago em 2015, sendo assim, acusado por seus antigos participantes de gentrificação – termo muito utilizado nos EUA para designar o fenômeno social de supervalorização de um local e o consequente afastamento da população de baixa renda deste local.
O festival, de fato, tornou-se uma marca que abarca um guarda-chuva musical e cultural muito maior do que a sua primeira versão, além de ganhar edições em outras cidades dos EUA (Atlanta e Miami) e se internacionalizar, tendo edições em Paris (2015), Londres (2016), Joanesburgo (2018) e no Brasil, mais precisamente na Bahia, em 2021.
Antes de trazer minhas reflexões, deixo aqui minha experiência enquanto voluntária do AFROPUNK Brooklyn 2022, que aconteceu nos dias 10 e 11 de setembro. Digo que são reflexões, porque, de fato, não tenho uma resposta fechada para as perguntas que apresento. Nem sei dizer se de fato há uma resposta fechada. Eu me candidatei ao voluntariado no festival por dois motivos: o primeiro e mais óbvio de todos foi para economizar no ingresso, afinal minha bolsa da CAPES comporta o básico; o segundo, por ser uma forma de estar em contato com os produtores do evento, poderia conseguir entrevista para compor a minha pesquisa.
O processo para ser voluntária foi bem simples: mandei um e-mail com o meu currículo, eles responderam, marcaram uma entrevista com um dos produtores e pronto. Aguardamos o contato também por e-mail para saber nossos turnos e postos de trabalho e fomos convocados para uma reunião no dia anterior ao início do festival.
Logo no início da reunião, o produtor responsável deixou uma coisa muito clara: como a maioria das organizações negras, o AFROPUNK não tem dinheiro. Tem uma marca forte, mas dinheiro mesmo eles não têm, e por isso precisam de voluntários. As poucas pessoas que trabalham de forma remunerada já foram voluntárias por anos. Fizemos um tour pelo espaço, mas não foi possível ver muita coisa porque eles estavam montando (e rezando para terminar a tempo). O que pude observar nos dois dias de evento é que se tratava de um festival enorme, com um público grande e atrações de peso, mas a estrutura e a quantidade de profissionais envolvidos demonstraram não serem suficientes para o tamanho do evento.
Mas o público parecia relevar tudo isso diante de um momento tão simbólico. Eram pessoas felizes, com visuais maravilhosos, shows rolando e tudo mais que um AFROPUNK promete. Falando sobre os looks, Eric Darnell em seu artigo chama atenção para a moda do AFROPUNK, que no seu entendimento foi rivalizada apenas com a música, e comanda a maior fatia da grande imprensa, com publicações que documentam a ferocidade do estilo dos participantes do festival. As pessoas pensam em looks especialmente para esse evento, e este acaba se tornando também um espaço de representação artística.
A ideia do festival é incrível, foi muito bacana participar do evento de pertinho, mas…sempre tem o MAS, não é mesmo? Ficaram várias perguntas pra mim: que tipo de experiência o AFROPUNK entrega nos diferentes lugares? Qual é o impacto econômico desse festival para pessoas pretas?
A marca AFROPUNK é muito forte digitalmente, algo que podemos comprovar ao acessar o site afropunk.com, onde é possível encontrar muito mais que edições de festivais anteriores; trata-se de uma plataforma de informação, conhecimento e realização de projetos. Há inclusive no site uma lista de fornecedores de produtos e serviços de alta qualidade feitos para comunidade negra, produzida pela diretoria de negócios da plataforma AFROPUNK.
Sem sombra de dúvidas, mesmo sendo alvo do reflexo racista que assola a falta de poder econômico das organizações negras, o AFROPUNK têm hoje um grande potencial aglutinador que promete muito futuramente, principalmente no que tange o potencial criativo e gerador de renda do povo preto. Estou aqui em Nova Iorque, depois dessa experiência no Brooklyn, esperando “notícias de Salvador”, como diz a cantora Luedji Luna – uma das atrações do Afropunk Bahia em 2021.
O AFROPUNK Bahia é a única edição da América Latina que conta com uma rede de incentivos e investimentos, em convergência com o futuro turístico da cidade de Salvador, que não para de investir no “Capital Afro” da cidade mais negra fora do Continente Africano. Tentar pensar o as convergências negras Salvador e o Brooklyn faz todo sentido pra mim. Um movimento que motivou a minha vinda para NYC para pesquisar consumo e ajudou a pensar nas possíveis respostas para a série de perguntas que fiz nesse texto e me faço sempre. Portanto, quero saber o que vocês acharam da última edição do AFROPUNK Bahia e colaborar na construção de novos saberes sobre como as pessoas, principalmente negras, consomem e se sentem representadas nesse campo.
Esse foi o último texto do especial Convergências Diaspóricas SSA-NYC aqui em Blogueiras Negras, mas você pode continuar acompanhando os desdobramentos da minha pesquisa e o meu trabalho no Instagram @daisy.osunduni. Me conta o que você achou desse e dos demais textos! Muito obrigada a você que acompanhou tudo por aqui e ao Blogueiras Negras pelo espaço. Até logo!
___________________________________________________________________________________
Para quem se interessar, segue minha bibliografia de apoio para esse texto:
ONEKA, La Bennett. Consuming identities: Consumption, gender and ethnicity among West Indian adolescents in Brooklyn. Harvard University ProQuest Dissertations Publishing, 2002.
GIORGIS, Hannah. Gentrifying Afropunk. The New Yorker. Agosto de 2015.
JOSEPHS, Brian. O Festival Afropunk não é mais Punk?. Revista Vice. Tradução: Marina Schnoor. 2015.
PRITCHARD, Eric Darnell. Grace Jones, Afro Punk, and Other Fierce Provocations: An Introduction to “Sartorial Politics, Intersectionality, and Queer Worldmaking”. QED: A Journal in GLBTQ Worldmaking (2017) 4 (3): 1–11.