Tenho escolhido aprender/teorizar pelas conversas que tenho, principalmente, com mulheres negras, trans e cis. A dinâmica da conversa varia, às vezes ela é ali pertinho uma da outra com direito a gargalhada e abraço de “ai que saudade!”. Às vezes ela é semi solitária, ali com o texto de uma companheira a medida que grifo e faço um rascunho animado de “Isso! Arrasô mana!”. O afeto dialógico entre mulheres negras como forma de cuidado auto/coletivo enquanto prática de aprendizado é um ato libertador frente a um legado aprisionador de corpos negros e trans.
Estava eu conversando com a mana Selen Ravache, dividindo a frustração do processo violento e moroso de mudança legal de nome, quando eu dizia, “Minha irmã! Eu ali na frente daquela psicóloga me questionando e eu sabendo que aquilo é um diagnóstico!”. Selen responde do outro lado da linha “Dora, e eu com aquele Juiz e pessoas em uma sala te questionando pra essa mudança, parece que você está sendo julgada!”. Nossa conversa dividia nossas frustrações sobre a luta para acreditarem em nossas historias, naquele caso, pela confissão compulsória e invasiva que resulta em um diagnóstico patologizante como condição para nosso acesso a direitos básicos como uma identificação legal que reflita nosso nome e gênero.
O sentimento de julgamento, o sentimento de frustração, o sentimento de raiva, o sentimento de angústia, a ansiedade de agir por mudança. Tudo ali, um aquivo de introspecção de mulheres trans negras na efemeridade de uma conversa por telefone. Onde mais se encontra um arquivo dialógico de introspecção de mulheres trans negras senão nesses momentos? Muito do trabalho de auto-cuidado que temos vem não só nas medidas precárias que tomamos para nos protegermos de violência, mas principalmente no trabalho interno, no trabalho com a ansiedade pelo trauma de violências já sofridas e pelo potencial das que podem vir. Chegar viva em casa não significa que nada aconteceu. Um mundo aconteceu dentro de nós!
O depoimento de mulheres trans/negras é sempre questionado: “Mas você reagiu?” “Mas quando você teve certeza?” “Mas como você estava vestida?” “Mas por que você correu?” “Mas por que você não chamou a polícia?” Tal não credibilidade constitui um fator fundamental na negação de direitos básicos que exigem uma confissão como o processo legal não só na mudança de nome, mas também na criminalização e aprisionamento de nossos corpos. Seja em uma prisão de um imaginário dominante grotesco e de ameaça, seja pela prisão de nossos corpos por encarceramento. O sentimento de estar sendo julgada no processo de mudança de nome perpassa pela mesma lógica de julgamento e questionamento de corpos negros para fins de encarceramento. Ambos processos também são punitivos na medida que nossa mulheridade, humanidade, direito a vida e liberdade são julgados e decididos por instituições opressoras.
Um dia desses, estava eu tendo uma animada conversa com o texto escrito por Maria Clara Araújo, que faz uma análise muito pertinente, a partir da perspectiva radical de Angela Davis, sobre a necessidade de se complexificar a categoria mulher lembrando que a luta pelo reconhecimento de nossa mulheridade faz parte de um legado de resistência que pode se associar ao questionamento de mulheres negras cis sobre a categoria mulher baseada em um feminismo branco.
Davis faz referência a essa discussão, mas destaca a necessidade de interseção com o movimento abolicionista contra a Industria de Complexos Prisionais. Davis fala do que projetos abolicionistas como TGIJP liderados por mulheres trans negras como Miss Major podem oferecer para pensar em sistemas de auto-responsabilidade que possam ir além das prisões que amontoam corpos negros ou que nos matam no processo de abordagem com intenções de encarceramento.
Miss Major e minha amiga Selen não usam a linguagem de Transfeminismo, ela praticam trans feminismo abolicionista encarnado, assim como várias de nós, dentro das nossas diferentes lutas mas também dentro dos nossos privilégios, especialmente quando “forçamos” nossa presença e pautas em espaços de elite como a academia; mas também educando, sim, por meio da linguagem do Transfeminismo (como as manas Hailey Kaas e Jaqueline de Jesus, por exemplo). Um Transfeminismo Abolicionista Anti Racista busca criar teorias e práticas anti-racistas, anti-transfobica, anti opressão CIS-temica (Como a mana Viviane Vergueiro enfatiza) que forjem nossa liberdade.
Liberdade enquanto autonomia sobre nossos corpos e identidades sem necessidade de depoimentos compulsórios e punição por encarceramento. Sendo mulher trans negra imigrante estudando no país que mais encarcera corpos negros no mundo e que criminaliza mulheres trans e imigrantes, o sentimento de ansiedade em circular nas ruas, em participar de protestos e ser presa e deportada é constante, apesar da minha resistência quando escolho fazê-los. Há dias em que “nada acontece,” mas um mundo aconteceu dentro de mim.
Referências
Angela Davis: https://www.youtube.com/watch?v=IKb99K3AEaA
Hailey Kaas: http://transfeminismo.com/
Jaqueline de Jesus: http://jaquejesus.blogspot.com/2014/11/1-livro-sobre-transfeminismo-em-lingua.html
Maria Clara Araujo: http://blogueirasnegras.org/2016/01/16/angela-davis-e-a-sua-verdade-sobre-o-que-e-ser-radical/
Miss Major: https://en.wikipedia.org/wiki/Miss_Major_Griffin-Gracy
Selen Ravache: http://tantasnoticiasx1.blogspot.com/2011/08/selen-ravache.html
TGIJP: http://www.tgijp.org/
Viviane Vergueiro: http://iberoamericasocial.com/colonialidade-e-cis-normatividade-conversando-com-viviane-vergueiro/
Imagem – Wura-Natasha Ogunji, She danced.