O Meu primeiro Desafeto Afeto.
Era provavelmente meados de junho de 1999, contava eu com os meus 12 anos de idade. Me recordo da roupa, e do cabelo lambido pelo creme (eu morria de vergonha do volume) mas adorava aqueles meus cachinhos. Até então, nunca, nem por um milagre, um menino havia se aproximado. Não pelos motivos corretos.
Àquela altura eu estava em um processo de transformação. Como acontece com muitas de nós, meu corpo tomou formas voluptuosas do dia para noite, seios volumosos, aumento do quadril, acima de tudo, eu estava aprendendo a lidar com as perdas da infância. Era um período próximo às férias, e haviam poucas crianças na escola.
Na aula de português, após sair de um grupinho de meninos, sentados a parede, veio a mim uma amiga atônita: “Bárbara! Você não vai acreditar, um dos meninos disse que gosta de você! Ele quer se declarar, te pedir em namoro. Meu Deus! Você vai?” Olhando o grupo me senti surpreendida, minha amiga decidiu ocultar o nome do “Apaixonado”. Achei que era mais um deboche qualquer.
Pela primeira vez um menino se interessaria por mim, e eu estava notadamente surpresa. Daqueles namoricos bobos de escola, não vivi nenhum, não sabia o que era isso. Então ela terminou a frase: “Encontre ele na escada, na hora do intervalo”. Ao soar o sinal eu não sentia nenhum frio na barriga, não sentia nada, dirigi-me a escada, pensando apenas: Quem será?!
De longe, aquele foi um dos momentos mais loucos da minha vida. Aquele era o primeiro contato afetivo com um menino. Era o momento em que a passagem da infância para adolescência ficaria marcada para sempre.
Quando me deparei com o Crush, levei um susto que abriu-me a boca. Fisicamente não esbocei nenhuma reação, mas lembro de cruzar os braços na altura da cintura e esperar ansiosamente pelo o que estava prestes a ouvir. Boquiaberta fiquei mais ainda, quando pela primeira vez em anos, ele me chamou pelo nome.
Gaguejando, soltou o primeiro “Amo Você!” (com gosto de fel) que ouvi na vida. Eu era apenas uma menina adentrando a adolescência, mas entendia alguma coisa sobre gostar de meninos. Já tinha amado ídolos da TV como os backstreet boys, e um vizinho adolescente. Mas, voltando! Após a longa declaração de “amor”, fui surpreendida com a pergunta que ele deveria calar: “Você quer namorar comigo?” Foi então que aos doze anos de idade, escolhi o padrão de relacionamento que daria forma as minhas escolhas afetivas durante os próximos períodos da minha vida. E na verdade essa história não começa em meados de junho de 1999.
Três anos antes, sentada nas primeiras carteiras em frente a lousa, entra na sala de aula um menino grande, branco, com o boné virado de lado. A primeira impressão: Nossa, ele é bonito, mas parece “bagunceiro”. Ele veio transferido de outra escola, após sua expulsão, era seguramente “bagunceiro” e três anos mais velho. Lembro do meu primeiro contato com ele, foi inesquecível.
Meu pé estava esticado, e ao quase tropeçar ele gritou: “Tira o pé macaca!”. Daí em diante, esse tornou-se meu pseudônimo. Ao se dirigir a mim, sempre exclamava: “Sai da frente macaca!”, “Tira o pé da cadeira macaca!”, “Só podia ser a macaca”.
Quando ganhei minhas formas avantajadas da noite para o dia, foi dele que recebi o primeiro “elogio”: “Nossa macaca, tá ficando gostosa hein!”. Não sentia nada, fiquei chocada com tamanho aviltamento, talvez eu tenha ficado estática. Isso, estática! fiquei estática. Permaneci assim durante longos anos depois. Na verdade estava estática até pouco tempo atrás.
Eis, que três anos depois daquele primeiro encontro fatídico na sala de aula, estávamos frente a frente, próximos a escada na hora do intervalo. Ele, no auge de seus dezesseis anos, cheio de meninas, padrão beleza “europeu” a seus pés. E eu só pensava na grande chance que o universo me dava em fazê-lo sofrer.
Respondi a sua investida com um lindo e sonoro: “Não!“. Acho que ele nunca tinha ouvido um não de uma menina. Começou a chorar, gaguejou e me questionou o porquê do “fora” que levara, apenas perguntei: “Terminou?” E me retirei. Assumo que senti uma grande satisfação pessoal naquele momento, um sentimento genuíno de vingança misturado a justiça. A partir desse momento, ele passou a me chamar pelo nome, sempre muito gentil e educado. E foi aí que entendi a grandiosidade daquele feito.
Definitivamente nenhuma menina deveria passar por esse tipo de violência afetiva, e nenhuma deveria aceitar inconscientemente esse padrão como afeto. No entanto, quando se é jovem, não há amadurecimento suficiente para raciocinar sobre padrões doentios de afeto. Infelizmente nossas raízes estão doentes, e não falo sobre nossos pais, ou avós, falo sobre uma estrutura social perpetuada ao longo de gerações.
Não neguei essa relação, e outras que se colocaram no meu caminho, por ser dotada de inteligência emocional, ou produto de uma boa educação afetiva. No entanto, tenho de reconhecer que tive uma base um pouco menos permeável, no que diz respeito ao subjugo do meu corpo em detrimento do prazer do outro.
Fomos intelectualmente empoderadas (eu e minha irmã) em parte pela educação, em outra, pelo exemplo de pessoas que apesar da exclusão social e do preconceito, não abaixaram a cabeça. Embora eu tenha vivenciado um ambiente familiar afetivamente doente, de pessoas que não podiam controlar suas neuroses, adquiri ainda na infância, plena consciência de que meu corpo e meu intelecto eram de propriedades minhas, apenas minhas.
Como psicóloga, posso afirmar que para esses processos doentes existem cura, é possível sarar as feridas e construir padrões mais saudáveis de relacionamentos. Como mulher, vos digo que apesar de ter consciência do que me acontecera, não posso deixar de reconhecer a marca que me deixou. O quanto essa agressão influenciou inconscientemente as minhas escolhas durante uma vida.
Empoderar nossas filhas é um cuidado a executar. Falar sobre os ataques que sofri, me cura um pouco a cada dia. Tenho o sonho de curar outras irmãs, por isso, escolhi essa vivencia para compartilhar. Modificar padrões de afeto e mudar paradigmas, é prevenir abusos e violência. O afeto cura, na mesma medida em que pode matar, então, porque não aliviar essas dores?
Um Abraço!
Imagem – reprodução web