Os riscos de uma jovem negra ser assassinada no Brasil é 2 vezes maior do que jovens brancas. É o que mostra o Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência (IVJ) 2017, divulgada nesta segunda-feira, (11/12). O estudo faz parte de uma pesquisa desenvolvida pela Secretaria Nacional de Juventude, Unesco no Brasil e Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Portanto, não tem como pautar a violência no Brasil sem mostrar que ela tem cor e gênero.
“Numa sociedade racista não basta não ser racista, é necessário ser antirracista” Angela Davis
Vivemos em um país que é o 5º maior em números de homicídios de mulheres, temos 4,8 homicídios a cada 100 mil mulheres, segundo a OMS. Ficamos atrás apenas da Rússia, Guatemala, Colômbia e El Salvador. O número de feminicídios cresceu entre 2003 e 2013 de 3.937 para 4.762, segundo o Mapa da Violência 2015.
O feminicídio é o assassinato de mulheres em contextos marcados pela desigualdade de gênero. Ele visa nos submeter a uma lógica de dominação masculina.
O feminicídio é a instância última de controle da mulher pelo homem: o controle da vida e da morte. Ele se expressa como afirmação irrestrita de posse, igualando a mulher a um objeto, quando cometido por parceiro ou ex-parceiro; como subjugação da intimidade e da sexualidade da mulher, por meio da violência sexual associada ao assassinato; como destruição da identidade da mulher, pela mutilação ou desfiguração de seu corpo; como aviltamento da dignidade da mulher, submetendo-a a tortura ou a tratamento cruel ou degradante.” (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência contra a Mulher)
O crime de feminicídio está previsto na Lei nº 13.104/2015, que alterou o art. 121 do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940). Os parâmetros que definem a violência doméstica contra a mulher, por sua vez, estão estabelecidos pela Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340) desde 2006.
A Lei de Feminicídio foi criada a partir de uma recomendação da CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) que investigou a violência contra as mulheres no contexto brasileiro, de março de 2012 a julho de 2013.
Ao incluir no Código Penal o feminicídio, essa categoria foi adicionado ao rol dos crimes hediondos (Lei nº 8.072/1990), assim como o estupro, genocídio e latrocínio, entre outros. A pena prevista para o homicídio qualificado é de reclusão de 12 a 30 anos.
No contexto gaúcho, segundo dados da Secretaria da Segurança Pública (SSP), 65 mulheres foram assassinadas no Rio Grande do Sul nos primeiros nove meses de 2017 pela condição de ser mulher. Quando uma mulher é morta no estado, o crime é registrado no boletim de ocorrência como homicídio e, só no fim do inquérito, ganha o nome de feminicídio. A tipificação da palavra feminicídio nos boletins de ocorrência é uma das bandeiras levantadas por movimentos de mulheres não só em Porto Alegre, mas no conjunto do país. A campanha “issoéfeminicídio” trouxe a importância de nomear o problema como forma de dar visibilidade e a partir disso começar a contabilizar essas vítimas e pensar em políticas públicas eficazes de enfrentamento a violência de gênero. Desde 2013, quando o governo passou a disponibilizar os indicadores de feminicídios tentados, nunca houve tantos registros como em 2017. Com a vitória da campanha “issoéfeminicídio” a partir de janeiro de 2018, a Polícia Civil gaúcha passará a utilizar, desde o início da investigação, o termo feminicídio nos casos de assassinatos de mulheres motivados por gênero.
Enquanto mulheres convencionais lutam contra o machismo,
As negras duelam pra vencer o machismo,
O preconceito, o racismo. (Mulheres Negras – Yzalu)
Mas essa violência tem cor! Mesmo com a vigência da Lei Maria da Penha 11.340 a partir de 2006, o número de vítimas cai 2,1% entre as mulheres brancas e aumenta 35,0% entre as negras. Se pegarmos um período mais largo, entre 2003 e 2013, vemos um decréscimo no número de feminicídios das mulheres não negras e um aumento de 54% entre as mulheres negras, passando de 1.864 para 2.875.
A população negra está no topo da lista de homicídios no país. Considerando ser a parcela da população mais marginalizada no acesso a bens, serviços e também aos direitos. O racismo é um mecanismo singular na construção deste cenário.
O racismo, assim como o patriarcado, é estrutural em nossa sociedade. Portanto, refletir sobre um cenário de violência sobre as mulheres negras sem relacionar o racismo e o sexismo como mecanismos de opressão é inviável. Pois este quadro reflete a construção histórica social da condição da mulher negra em nosso país. Como uma colônia com uso da mão de obra escrava africano, constituímos sobre as mulheres um outro percurso sobre a divisão sexual do trabalho. Tendo em vista que as mulheres negras sempre trabalharam, ainda que forçadamente, tanto na produção (rua) quanto em trabalhos domésticos. Além do ponto mais importante, talvez, para construção do imaginário sexual e afetivo sobre as mulheres negras, a cultura do estupro. Uma perversa herança escravocrata sobre as mulheres negras.
A escravidão se sustentava, tanto na rotina do abuso sexual quanto no tronco e no açoite. Impulsos sexuais excessivos, existentes ou não entre os homens brancos como indivíduos, não tinham nenhuma relação com essa verdadeira institucionalização do estupro. A coerção sexual, em vez disso, era uma dimensão essencial das relações sociais entre senhor e escrava (Davis, 1981 p.180).
É preciso relacionar a condição sexual e afetiva frente a violência sobre as mulheres negras à nossa colonização, pois há uma interligação histórica e estrutural sobre os processos.
Como olhar a violência sobre as mulheres negras ignorando a condição histórica em que o abuso sexual se firmou como mecanismo de opressão? O quanto que esta cultura, ao recair sobre as mulheres negras, impacta sobre a construção de suas relações afetivas?
A desumanização das mulheres negras, objetificadas e diminuídas em nossa estrutura social, é como uma espécie de fundamento para ser violentada.
A pesquisadora Djamila Ribeiro, explica que as mulheres negras têm os seus corpos desumanizados historicamente, ultrassexualizados, vistos como objeto sexual. Esses estereótipos racistas contribuem para a cultura de violência contra as negras, pois somos vistas como “fáceis”, as que não merecem ser tratadas com respeito.
Em geral, a unidade na luta das mulheres negras em nossa sociedade não depende apenas da nossa capacidade de superar as desigualdades geradas pela história hegemonia masculina, mas exige, também, a superação de ideologias complementares desse sistema de opressão, como é o caso do racismo (Carneiro, Sueli, 2001).
Como já foi apontado ao longo do artigo, não há dúvidas de que toda mulher pode ser vítima de violência doméstica e sexual, independentemente de sua cor ou classe social, no entanto, os dados apontam que nós mulheres negras constituímos o grupo de maior vulnerabilidade justamente pelo fato da cor da pele. Sendo assim, o racismo responsável pelo genocídio de jovens negros, também perpetua e agrava a prática dessa violência contra as mulheres negras. Portanto, enquanto essas opressões, que são estruturais, não forem travadas, as políticas públicas brasileiras não serão suficientes para parar a morte de mulheres e principalmente de mulheres negras.
Referências consultadas
MARTINS, Helena. Taxa de feminicídios no Brasil é a quinta maior do mundo. 2017. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2017-08/taxa-de-feminicidios-no-brasil-e-quinta-maior-do-mundo>
Agência Patrícia Galvão. Dossiê Violências contra as mulheres. Disponível em:
<http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/violencias/feminicidio/>
Assassinatos de mulheres por gênero serão registrados como feminicídios em 2018 no Rio Grande do Sul. Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/seguranca/noticia/2017/11/assassinatos-de-mulheres-por-genero-serao-registrados-como-feminicidios-em-2018-no-rs-cj9im8rb80g0601lcfe1co06y.html>
Polícia Civil do RS vai adotar termo feminicídio em boletins de ocorrência a partir de 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/policia-civil-do-rs-vai-adotar-termo-feminicidio-em-boletins-de-ocorrencia-a-partir-de-2018.ghtml>
KERKHOVEN, Nathalia. Feminicídio em alta no RS. Disponível em: <https://unipautas.uniritter.edu.br/?p=1577>
Yasmin Costa e o feminicídio que mata mais as mulheres negras no Brasil. Disponível em: <https://nosotrasfeministas.wordpress.com/2017/04/13/yasmin-costa-e-o-feminicidio-que-mata-mais-as-mulheres-negras-no-brasil/>
Aumenta número de homicídios de mulheres negras no Brasil. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/aumenta-numero-de-homicidios-de-mulheres-negras-no-brasil-6928.html>
CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o Feminismo: A situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. Documento apresentado no Seminário Internacional sobre Racismo, Xenofobia e Gênero. Durban (África do Sul), ago. 2001.
RIBEIRO, Djamila. Cultura do estupro: o que a miscigenação tem a ver com isso. Disponível em < http://www.cartacapital.com.br/sociedade/cultura-do-estupro-o-que-a-miscigenacao-tem-a-ver-com-isso>
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. S.Paulo: Boitempo, 2016 [1981]
Risco de jovem negra ser assassinada é duas vezes maior que de branca, aponta pesquisa. Disponível em: <https://extra.globo.com/noticias/brasil/risco-de-jovem-negra-ser-assassinada-duas-vezes-maior-que-de-branca-aponta-pesquisa-22174804.html>
Imagem – Rabiscos da Carolzita