“Ok não coordeno mais o Blogueiras Negras, mas ainda fico passada na farinha de rosca como é difícil reconhecer determinadas iniciativas feministas se a feminista que esta a frente não “vende”, não “fica bem nas câmeras e holofotes”. Não acredito que o Canal GNT tenha procurado o Blogueiras Negras sequer para convidar quem criou e mantém o projeto para compor mesa ou assistir quem aparentemente vai falar como Blogueira Negra.
Mais engraçado ainda é ver que não se apropriam de TODA E QUALQUER iniciativa de mulheres pretas, escolhem uma, a qual se dão o direito de apropriar e usar pra tudo quanto é coisa de projeto pra ganhar bolsa até espaço quando não é preciso brigar por ele. O tempo passa e as coisas não mudam não é mesmo?
Falar sobre empoderar, sobre ocupar espaços, sobre genocídio da população preta e SAMBAR em cima do trabalho de outras mulheres tantas virou lugar comum.”
Maria Rita Casagrande
(…)
Coragem é ter memória
A escrita pressupõe preservação. Se isso é estratégico em tempos menos confusos, que dirá em tempos de golpe. A palavra escrita é palavra dada, é compromisso entre quem lê e quem escreve. Envolve um bando de gente que está entre a autora e a audiência. Por isso, nós Blogueiras Negras, somos tão ciosas de nossos textos, de nosso nome e de quem o representa, das causas e consequências de termos escolhido como modo e meio de resistência o ato de escrever.
Preste muita atenção que dá samba – quem cola com quem publiciza o golpe, mesmo sob o pretexto de ocupação, não cola comigo. Quem cola em quem acredita que vagina é um tubo infecto na esperança de que um debate frutífero seja construído (e aqui boto fé de que vocês se lembrem do que estamos falando), não me representa e não divide do seu pirão comigo. Quem cola em quem tokeniza pra me convencer de que não é racista, não cola comigo. Quem usa meu nome pra sair na foto, não foi e nem nunca será meu aliado. E se um dia foi, deixou de ser agora mesmo.
Lembre-se, o projeto (deles, não o nosso) nunca foi ter mais apresentadoras, atrizes, jornalistas, senadoras, médicas, executivas, advogados negras. Nunca foi sobre a nossa escolha. Se você ainda não percebeu, apesar de ter escrito tanto sobre isso, a nova ordem é o retrocesso. Não foi o milagre brasileiro que formou aquelas que imediatamente nos precedem, muito menos uma protocolar (e insuficiente) assinatura redentora. Foi a luta secular de incontáveis mulheres negras, tantas vezes sem nome e sem rosto nessa historiografia perversa, anos a fio, levando umas às outras muito além do que nos disseram que poderíamos ou deveríamos ir.
Não se esqueça que assim permanecem não por nossa vontade ou falta de afinco, mas para que voltem ao lugar de onde ousaram sair e nós junto com elas. Não se esqueça que a branquitude é seletiva, determina quem entra e em quais circunstâncias na casa grande (e aqui jamais perdoaremos quem usou tais palavras para descrever uma de nós; lembrem-se, porque nós não esquecemos). É ela, a branquitude, quem decide nosso tempo de validade nesse sistema de coisas, nossa destinação (e não destino) e quando retornaremos aos lugares que nos são reservados ao sabor de seus interesses.
Não é esse o modelo de ocupação que nós, Blogueiras Negras, defendemos.
Seremos nós mesmas a dizer quem nos representa, jamais à mercê da curadoria conveniente daqueles que querem moldar nossa fala de acordo com a ocasião ou legitimar a si mesmos. E antes que nos acusem de leviandade, nós sabemos muito bem do que estamos falando. Nosso movimento sempre foi de escolher quando e com quem sentamos em luta ou celebração, sempre fomos nós mesmas a dizer (e se preciso desdizer) quem nos representa. É justamente pra isso que estamos aqui.
A armadilha da teia
Um dos canais alternativos do maior conglomerado de comunicação do país está na televisão fechada destilando seu veneno, sua visão de mundo, seu projeto de sociedade. O GNT, que pretende advogar para si alguma diversidade (se comparado com sua contraparte na televisão aberta), mal esconde por trás da cara branca a mala de maquiagem racista, cissexista, gordofóbica, heteronormativa e elitista que tipifica as produções globais.
Não é à toa que a maioria dos seu contratados são os mesmos figurões e figurinhas de sempre, com raríssimas exceções que nada mais são que um experimento, um espantalho pintado de diversidade para tirar da cartola caso alguma denúncia seja feita. Apenas o suficiente para esfregar na nossa cara preta se for preciso, afinal somos barraqueiras a quem falta habilidade de interpretação da realidade, essa gente que jamais se sentirá satisfeitas mesmo com quatro atrizes negras estrelando um seriado global. Povo que não tem o que fazer viu…
Esse roteiro é antigo.
Acontece que na última semana, fomos surpreendidas com um “novo” projeto ao qual não fomos convidadas, muito menos como palestrantes ou como audiência, mas que irônica e curiosamente tinha nosso nome, Blogueiras Negras, aparecendo lá. É meio estranho acordar um dia e estar no GNT, seja lá o que isso signifique, sem ao menos ter sido informada.
Já que estaríamos lá, por um momento desses que a gente não sabe se está acordada ou dormindo, pensamos em encontrar alguma alma responsável pela programação e exigir (por obséquio, que a gente sabe ser educada) que parem de veicular aquelas propagandas em que os brancos sem fronteiras exploram imagens de pessoas negras em situação de fragilidade extrema para financiar a si mesmos como salvadores. Será que reclamar uma vez já basta ou tem que ser por quilo?
Enfim… Sem que ao menos soubéssemos, nosso nome estava relacionado a “um evento com um conjunto de valores e ferramentas empoderadoras (…) repensando o mundo sobre uma perspectiva feminina” que se apresenta como uma “excelente” iniciativa de discussão dos temas atuais e das demandas das mulheres. Acredito que é nessa hora que você teve urticárias por causa do eufeminismo (nos deixem que somos dessas) empregado acima. Quando o povo fala em “perspectiva feminina” a coisa não cheira bem, não pode dar certo, pra falar o mínimo.
Vocês percebem que hora alguma a palavra FEMINISMO foi citada? É uma iniciativa FEMINISTA de fato? Perguntar é preciso porque estamos falando de um produto global – é tão complicado falar abertamente em feminismo? Seria uma verdade, um movimento tão perigoso que não se pode ao menos escrever seu nome com todas as letras? Porque é tão difícil reconhecer que além de feministas, existem feministas negras? E será que existe transfeminismo? A menos que a nova ordem também seja o retrocesso, nada mais explica. Chamar de eufemismo é pouco. É eufeminismo mesmo.
Aliás, se você querida leitora se der ao trabalho de procurar o link de inscrição do evento (que é bastante problemático, pra não dizer excludente e transfóbico) verá que também não há menção ao FEMINISMO, fazemos questão de repetir. Feminismo negro? Muito menos! Quem sabe depois desse texto algo mude. Quem sabe aquilo em que acreditamos seja um pouco mais que meros detalhes na minibiografia de algumas convidadas, quase como um adendo caso essa gente chata (e recalcada) bote reparo em alguma coisa.
Caso você não se lembre… Caso você ainda não saiba… Ser preta, ser feminista negra, ser Blogueira Negra significam coisas bem diferentes aqui e acolá. Pra eles, a gente é tudo igual. Tanto faz se é você ou a coleguinha ao lado. Mas aqui o babado é outro. Ser Blogueira Negra nunca foi e nunca será sobre representatividade e visibilidade a qualquer custo, nunca foi sobre conveniência. É sobre colocar a cara a tapa quando tudo vai muito bem obrigada e quando tudo vem abaixo, quando temos de nos fazer entender e respeitar por quem está do lado de lá e até mesmo para com os nossos.
Ser Blogueira Negra é sobre nossas mais antigas, mas é também sobre nós mesmas e sobre quem virá depois. É sobre escrever, contra todas as possibilidades, tantas vezes sem ao menos ter um computador, sem receber um vintém. É ser chamado de bloguinho por quem reproduz nossos textos sem autorização, algumas vezes dando autoria a outrem. É sobre ter que brigar para que seu texto e o da amiguinha sejam respeitados como trabalho autoral, como feminismo.
É sobre ser inspiração mesmo quando nós mesmas temos dúvidas. É sobre passar a noite acordada com medo de o servidor (e o teto da casa) cair. É revisar junto com a autora o texto mais uma vez, e mais uma vez, e mais uma vez. É sobre a profunda ciência da responsabilidade que isso significa. É sobre programar as redes sociais. É sobre repetir isso inúmeras vezes, mesmo quando a inundação, a depressão, a vontade de morrer, o racismo, o machismo, o preconceito de toda sorte ou a conta pra pagar chegou. É saber que se teve hoje, vai ter mais amanhã. Tudo ao mesmo tempo.
É segurar a barra da companheira sem ter quem segure a sua, por meeeeeeeeses a fio e sem esperar nada em troca, apenas por acreditar que uma ideia pode mudar o mundo. É sobre reconhecer privilégios quando se aplicam, é dar um passo pra trás quando necessário. Enfim… É sobre o cotidiano, o passar dos dias, a presença constante. É sobre lutar contra toda e qualquer tentativa de apropriação, vinda de quem quer que seja, em respeito a um esforço coletivo que se sedimenta sílaba à sílaba com tanta esperança e verdade.
Não basta um dia ter sido.
É sobre CONSTRUÇÃO, de nós mesmas, das companheiras, da própria casa e duas mil vezes do site. É bem diferente de tirar foto pra inglês ver em Brasília (porque muitas vezes se trata de evitar que a coleguinha inexperiente ou mal intencionada saia na foto, desavisada ou oportunista que é). Talvez você tenha esquecido agora que somos apenas uma lembrança distante, talvez seja conveniente fingir que esqueceu. Quem sabe a ideia seja essa mesmo…
E já que estamos falando em GNT, quem sabe a gente não poderia discutir porque em quase 15 anos de programa Saia Justa, nenhuma mulher negra sentou naquele sofá dia após dia. Será que não encontraram alguém? Será que não há mulheres negras suficientemente gabaritadas para interpretar e comentar a atualidade? Será que ninguém quis? Ou o motivo seria outro? Porque um canal voltado pro público eufeminista tem espaço pra machices mas não tem um programa só das pretas? Será que isso tem nome?
Repito aqui com minhas palavras o que diz uma de nós – a todos é impossível negar aquilo que se é de fato. Um veículo racista não chamará as preta tuda para ocupar todas as bancadas da emissora. Nunca convidarão as nega barraqueira pra sentar na sala porque corre o risco de a gente sentar a bota e não ia ficar bem no vídeo. Imagina se alguém lembra ao vivo que voltando um tantinho assim no tempo o projeto era o ixxxquenta? Imagina se alguém fala em eufeminismo de ocasião? É se alguém cita privilégio de cor?
Não nos esqueçamos também que até mesmo o mais bem intencionado dos movimentos pode ser facilmente fagocitado, reeditado, remixado. O GNT fará o que a branquitude sempre fez – se apropriará da produção das mulheres negras, buscará cooptar nossa inteligência e pensamento em favor próprio. Pra eles tanto faz se a nega (é) lora, se o que têm pra hoje é sexo com as nega ou se nossas crianças continuam vendo sítio na televisão. Pra eles tudo isso é liberdade de expressão. Não, não estou brincando.
É previsível.
Agora, mesmo que haja divergências (ideologias, filosóficas e práticas) entre nós, a conversa aqui é outra. Jamais concordaremos em tudo e o nome disso felizmente é humanidade. Mas nenhum projeto de poder terá êxito ou representatividade se não referenciar quem nos antecedeu, se não prestar profunda reverência para aquelas que nos são contemporâneas e sem planejar o futuro. Alguns chamam tudo isso de ancestralidade, diga-se de passagem. Mas também pode ser chamado de respeito, de história, de preservação. Dizem que uma elefanta nunca esquece, uma Blogueira Negra também não.
E para quem não se lembra, esse é aquele momento em que você deveria se questionar porque textos escritos há 50, 40, 30 ou 20 anos atrás continuam completamente atuais…
“… Foi então que uns brancos muito legais convidaram a gente prá uma festa deles, dizendo que era prá gente também. Negócio de livro sobre a gente, a gente foi muito bem recebido e tratado com toda consideração. Chamaram até prá sentar na mesa onde eles tavam sentados, fazendo discurso bonito, dizendo que a gente era oprimido, discriminado, explorado. Eram todos gente fina, educada, viajada por esse mundo de Deus. Sabiam das coisas. E a gente foi sentar lá na mesa. (…).
Mas a festa foi eles que fizeram, e a gente não podia bagunçar com essa de chega prá cá, chega prá lá. A gente tinha que ser educado. E era discurso e mais discurso, tudo com muito aplauso. Foi aí que a neguinha que tava sentada com a gente, deu uma de atrevida. Tinham chamado ela prá responder uma pergunta. Ela se levantou, foi lá na mesa prá falar no microfone e começou a reclamar por causa de certas coisas que tavam acontecendo na festa. Tava armada a quizumba. A negrada parecia que tava esperando por isso prá bagunçar tudo. E era um tal de falar alto, gritar, vaiar, que nem dava prá ouvir discurso nenhum. Tá na cara que os brancos ficaram brancos de raiva e com razão. Tinham chamado a gente prá festa de um livro que falava da gente e a gente se comportava daquele jeito, catimbando a discurseira deles. Onde já se viu?”
(Gonzales, Lélia. Racismo e Sexismo na cultura Brasileira)
Vivas ou mortas, jamais escravas
É exatamente a mesma coisa, percebe?
Eles nos chamam pra sentar, mas pra ficar atrás. As regras do jogo, do jogo deles, não são as nossas. Seremos a caricatura, o exótico, o paradoxo. Nessa festa a gente não fala e se fala, é tomada por barraqueira, recalcada ou louca. Quem sabe tudo isso junto. O pior é que tem mina preta comprando e recontando essa estória viu, gente que devia entender do que se trata. Lembrem-se de Nick Minaj apontando racismo na cara das Taylor Swift da vida. Lembrem-se de Nina Simone sendo rotulada como alguém impossível de se conviver. Lembrem-se que essa bola já cantava Marina Miranda com sua crioula difícil…
Alguns dirão que o simples fato de a imagem de uma mulher negra ser televisionada já seria uma conquista. Certamente há gente para quem a cara da gente já causa revolta. Só que em tempos de retrocesso precisamos exigir nada menos que muitos passos à frente. Queremos nossa cara estampada na televisão em pelo menos em 50% do tempo e ainda estariam em dívida. Não quero ser a pretinha lá do fundo que é escolhida pra falar, não quero ser a mucama, não quero ser exemplo subliminar de racismo reverso. Quero escolher sobre o quê, quando e por quanto tempo vou falar.
Qualquer coisa aquém disso vem das entranhas da ditadura, da repressão, da tortura, da prática de nos mandar calar a boca, da estratégia de nos dar migalhas, do desejo de nos fazer uma propriedade. É branquitude camuflada, adocicada, promovendo seus interesses políticos (e portanto midiáticos) para apagar nossa memória e assim a nós mesmas. A única chave que pode quebrar esse modelo, por dentro e por fora, é a coletividade, a resistência, a auto-organização levadas até as últimas consequências.
Nós Blogueiras Negras viemos dos jornais autônomos, dos quilombos e dos pallenques; viemos da revolução no tabuleiro do acarajé com escrita em árabe, dos revoltosos contra a chibata. Somos as mulheres das cantigas em outras línguas, das estratégias através dos sons e dos silêncios. Aprendemos com Carolina Maria de Jesus nosso ofício da denúncia escrita. Sabemos que nossa escrevivência não vem de outra pena que não a de Conceição Evaristo. Sabemos, tal como Ana Maria Gonçalves, que é preciso um profundo entendimento de quais foram os caminhos vividos até aqui.
Foram elas que nos ensinaram a fazer do nosso jeito, ainda que seja da maneira que dá, no papel catado ou com muita sorte no computador coletivo, quase quebrado. Mas com verdade. Ainda que estejamos a procura de alguma coisa que só entenderemos o que é quando a busca acabar, continuaremos contra todas as probabilidades. Nossos passos vem de longe, não é Jurema Werneck? Nós, mulheres negras, aprendemos mandinga e malícia, sobrevivemos porque damos suporte umas às outras. Porque faz muito tempo que a gente sabe que não existe revolução do eu sozinho.
Todo resto é manipulação barata.
Eu sei… Essa era a hora em que a gente deveria se calar ou aplaudir encantadas… Mas né.
Nós somos Blogueiras Negras.