As cotas raciais é uma realidade, embora muitos ainda não tenham internalizado a importância dessa política pública para inserção da população negra em diferentes espaços, os dados apontam sua eficiência.
Quando falamos em reparação histórica como mote para justificar a política de cotas é importante frisar que, com o final do período escravocrata, nada foi feito para que o povo negro tivesse acesso a garantias sociais bem como a defesa de sua cidadania. Ou seja, ainda estamos lutando para efetivação de algo que já deveria ter sido resolvido há mais de cem anos.
A lei de cotas raciais para cargos no serviço público é de 2014 e vem sendo ajustada de forma a combater as inúmeras fraudes ocorridas durante o processo. Em agosto de 2016 o governo federal através de uma instrução normativa determinou que apenas a auto declaração não seria mais suficiente e tornou obrigatório uma comissão de averiguação de forma presencial dos candidatos cotistas.
Recentemente o governo lançou uma portaria que regulamenta os procedimentos dessas comissões de averiguação no que chamou de “procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos candidatos negros”. Ou seja, legitima as comissões de averiguação como forma de complemento das auto declarações e orienta suas ações.
Em 2016, com a notícia da obrigatoriedade dessas comissões vi muitos questionamentos a respeito da legitimidade de tais bancas, vários problemas e preocupações foram apontados.
Participo de comissões de averiguação em concursos para serviços públicos desde 2014. Mesmo quando essas ainda não eram obrigatórias alguns editais já traziam as bancas de verificação como uma fase do concurso, obrigatória para candidatos cotistas.
Com a regulamentação através da instrução normativa, minha experiência com as bancas tomou outra dimensão, pois o contato com os candidatos passou a ser mais intimista, quase uma entrevista. Embora sempre tenha ficado nítido que o procedimento era de averiguação do fenótipo, precisávamos humanizar esse contato de modo a não constranger ninguém.
Quando se fala “averiguar os traços fenotípicos” parece algo simples, a pessoa passa, você olha e sabe se é preto ou não é. Mas não acontece dessa forma, pois assim seria tratar como mercadoria pessoas que estão num processo de muita tensão como é um concurso público.
As comissões são formadas por pesquisadores sobre as questões raciais e também por membros do movimento negro com reconhecimento por sua militância e que passam por treinamento específico. O desgaste psicológico não se dá apenas sobre os candidatos, mas também sobre quem avalia. Pois se busca o justo e nessa busca as nuances do racismo extrapola todas as dimensões.
Afinal como analisar a negritude brasileira num país onde ser negro no sul é diferente de ser negro no nordeste? E aqui não cabe apenas a cor da pele, nossos traços fenotípicos não são universais. Há pessoas negras de traços marcados e pele mais clara, assim como há quem tenha traços mais finos.
O cabelo crespo é um dos marcadores, mas como fazer tal análise no país da chapinha, da progressiva e dos cortes “chavosos”? Analisar os detalhes e ouvir, num tempo mínimo, cada candidato é crucial para tomadas de decisão.
O esgotamento da banca também é visível a cada final de processo. É nesse pequeno período de análise que os membros da comissão precisam fazer uso das teorias, das vivencias e percebe que muito daquilo que desenvolveu enquanto pesquisadores da temática, tomam outras dimensões e perspectivas.
Nos deparamos com várias pessoas que se diziam afrodescendente ou pardos por conta das raízes familiares, alguns tentavam nos mostrar traços que acreditavam ser heranças negras de forma a justificar sua participação como cotista, mesmo não apresentando o fenótipo.
O IBGE coloca pretos e pardos na mesma categoria, ou seja, são negros. Dessa forma, pardos não se encaixam no padrão branco, mas sim como negro de pele clara e é nesse sentido que candidatos que visam as políticas de cotas deveriam entender tal identificação.
A comissão segue regras específicas e, agora com a nova portaria, os procedimentos são mais compreensíveis para os candidatos. Busca-se coibir as fraudes e é perceptível, pra quem está por dentro do processo desde o início, o quanto a presença dessas comissões tem contribuído para a redução de pessoas que não se encaixam no perfil a que se destina a política de cotas.
Um detalhe que faz toda a diferença com a publicação da portaria sobre as auto declarações é que, antes os candidatos que não eram aprovados pela comissão continuavam participando do concurso pela ampla concorrência, agora serão eliminados do processo.
A responsabilidade das comissões aumenta enormemente, mas essa regulamentação é um ganho, pois visa dar transparência as ações como também nos orienta nos procedimentos, de forma que as decisões sejam as mais assertivas possíveis.
As comissões de averiguação não foram criadas para dizer a quem é preto se seus traços correspondem a sua auto declaração, mas para impedir que pessoas mal intencionadas façam uso de uma política pública que visa a reparação histórica que não foi feita no tempo certo.
Ou seja, as comissões não existem para analisar quem é preto, mas sim para quem não é e tenta fazer uso indevido de uma política pública específica para o povo preto.
Imagem destacada: Turma Unilab – Campo dos Malês – Bahia