A imagem construída sobre o que é ser uma mulher é deveras machista, misógina, limitada, mas do que é ser uma mulher negra é tudo isso e um pouco mais. Esse “um pouco mais” muitas vezes é massacrado no próprio meio libertário que tende a priorizar lutas, hierarquizando-as , e aí a minha luta enquanto mulher negra se transforma em “mais um ponto a ser trabalhado”.
Ainda há os que dizem que aqui o racismo é mais brando, que negras tem acesso a universidade assim como brancas, que cotas são desnecessárias. Aqui no Amazonas pessoas negras não são pessoas negras, são pardas. Aqui índio só é índio se andar pelado, com flecha. Ora, como bem já disse um professor “a negritude e a indianidade não é marcada pela cor da pele, pelo tipo de cabelo, pela forma do nariz. Não é uma questão genética, é uma questão cultural, histórica.”
Aqui no Amazonas, quanto mais branco melhor. Note bem, eu mulher negra, feminista, descendente de nordestinas, pobre e gorda sou o padrão do não-padrão, sou indesejável completamente indesejável em todos os espaços que procuro ocupar. A universidade federal daqui grita aos quatro cantos da terra o quanto a minha presença é desnecessária, que eu não deveria está ali. Mas eu estou e vou lhes dizer como é.
Aprendi desde cedo que eu não era tão negra, que se eu alisasse meu cabelo ficaria melhor e um dia achei mesmo que ficaria e durante algum tempo achei mesmo que eu era parda. No registro me dizem parda. Mas parda é cor? Parda é identidade cultural?
Lembro que um dia na sala de aula, eu com nove anos e o cabelo bem volumoso e lindo, uma professora decidiu passar um documentário, mas a televisão não pegava direito. Foi então que ela sugeriu que cortasse uma mecha do meu cabelo pra fazer a TV funcionar. Outra vez em uma festinha de família uma mulher disse a minha mãe: Em festa de branco, preto come por último. Isso foi devastador!
E senhores, parda é branqueamento estratégico de um Estado que dizima sem piedade tudo que não é branco, aqui como o resto do mundo prevalece a tese de que “quanto mais branco melhor”. Vivo num estado repleto de não brancos e somos abusadas constantemente. Por isso, a virgindade de meninas indígenas é comprada por 20 reais em São Gabriel da Cachoeira, por isso o prefeito de Coari acha cabível “comprar” meninas para abusar sexualmente e por isso também parte dos amazonenses acha que isso não é abuso as que “são caboquinhas interesseiras”, “não é estupro, ele pagou vai quem quer”.
Atualmente estou estudando na universidade e achei que ninguém iria mais pedir um pedaço do meu cabelo pra TV funcionar ou mandar eu comer os restos. Dentro da região norte, o Amazonas e o vizinho Pará são os estados com maiores proporções de negrxs, próximas a 80%. E elxs não estão dentro da universidade, nem estudando nem dando aula.
Como, se não por meio da educação, é que se fortalece uma identidade cultural? Vivemos num estado calamitoso! A universidade na qual estudo é branca e pede um pedaço do meu cabelo pra TV funcionar todos os dias.
Todxs sabemos da obrigatoriedade do ensino da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” (Lei 10.639 ). No entanto nunca aprendi sobre minha própria História, custei a saber quem foi Dandara, Audre Lorde, Angela Davis, Rosa Parks. O meu empoderamento completo veio em conjunto com o feminismo negro.
Fazendo uma disciplina (Africa, africanos e o Brasil) de inicio por curiosidade percebi muitas coisas e ganhei muitas inquietações. E o que antes eu chamava de injustiça hoje sei que se chama racismo.
Irmãs, não se envergonhem do formato do nosso nariz, do volume do nosso cabelo. Não nos neguemos enquanto mulheres negras! Afronte e perturbe a mente desses que teimam em embranquecer a cada dia mais uma cidade NEGRA e indígena.
Não se apequene!
Termino esse texto com um poema, feito pela minha irmã, Raescla Ribeiro de 16 anos:
Não é o calor de Manaus que lhe espanta
Ao perceber o meu cabelo enrolado solto por aí
É o seu racismo que insiste que eu o amarre, alise
Que o esconda e esqueça das minha raízes
Meu cabelo enrolado lhe incomoda
E o seu racismo acomodado me enoja
Esse seu racismo é o mesmo causador
Dos olhares e dos comentários que machucaram a minha mãe
Do sofrimento que estava envolto no meu avô
Da tortura, do estupro, do trabalho
Da escravidão dos meus antepassados
Esse mesmo racismo é o causador de toda essa dor
O seu racismo não vai me embranquecer
Não são os meu lábios ou meu sorriso largo
Tudo isso em mim que vem lhe incomodando nunca vai ser mudado
A minha história é imutável, assim como as minhas raízes
e a minha cor
Não vou me tornar agradável aos seus olhos racistas
Meu cabelo nunca foi ruim, ruim sempre será esse preconceito
Esse seu preconceito e desses outros de olhos vendados
Olhos vendados para o seu racismo, racismo acomodado
Causador da mesma dor, causador da minha dor
Meu cabelo não quer ser amarrado
Esse cabelo enrolado está solto do seu preconceito
Ignorando o seu desrespeito
Incomodando o seu racismo, mas nada incomoda mais do que esse seu
Racismo acomodado.