Esses dias eu vi uma menina negra passando na rua, atravessando a pista acanhada e se colando na calçada como se quisesse não ser vista. Acompanhei sua caminhada, com passos ligeiros e aturdidos quando se aproximava de grupos de pessoas, com passos lentos e doloridos quando a calçada estava vazia. Olhei pra aquela menina, o suor escorria da testa que brilhava, a respiração parecia irregular e ela arfava, é…tentar se esconder cansa.
Também fui essa menina negra que cresceu odiando seu rosto, seu corpo e seu cabelo. Fui essa menina negra de quem o povo mangava (ria) quando passava, acordar para ir para a escola, pegar com a minha mão o dinheiro para ir a padaria era um martírio; porque eu sabia o que me esperava pelo caminho, e assim com medo eu aprendi a andar depressa, muito depressa, a me colar nos muros e pedir que ninguém me visse.
Olhei para aquela menina passando e sim, me vi devolvida a mim, a menina Viviana de anos atrás, e fui curiosa olhar minhas fotos e me reencontrar com essa menina.
Peguei os álbuns empoeirados e fui no começo, na chegada da minha vida, encontrei Viviana Bebezinha, depois maiorizinha aos 2 aninhos e assim fui caminhando com a menina Viviana pelos anos que compõe meus anos e os seus e foi uma num misto de prazer e dor que a menina Viviane e eu nos surpreendemos:
A menina Viviana não é feia. A menina Viviana é linda. A menina Viviana é uma menina negra linda. Olho para seus olhinhos, pretos igual jabuticaba, para aquele narizinho achatadinho, olho com cuidado para aquela bocona e digo para ela e para mim: Mas Viviana como você é linda! Uns olhinhos faceiros, brilhantes, espertos, uma curiosidade ali presente no rostinho pretinho emoldurado por tanto cabelinho crespinho que parece uma coroa. E eu digo para a menina Viviana e digo para mim: Viviana, não precisava ter se escondido. Viviana você é tão cheia de graça! Tento me conectar com essa menina e começo a dizer: Viviana sai das sombras! Vivi sai do cantinho do muro, Viviana não precisa correr! Anda, Vi, anda porque você deve ser vista. Digo a menina Viviana da foto e tenho vontade de correr para a rua e tentar achar a menina negra que passou e lhe dizer isso tudo, desejando dizer a ela, porque gostaria que também para a menina Viviana, alguém tivesse dito.
Todas nós mulheres negras em alguma medida vivenciamos essa situação, quando olhamos para a nossa história percebemos o quanto a sociedade racista com seus padrões de beleza e de cuidado baseados num eurocentrismo branco nos roubou: roubou nossos passos tranquilos roubou nossa possibilidade de nos enamorarmos de nós mesmas diante do espelho, roubou nossos caminhar suave pelas ruas.
Lembro que aos 27 anos, já não mais a menina, eu Viviana, já Negra e com Orgulho e fortalecida, trabalhava numa comunidade periférica em Igarassu e uma velha senhora negra, a minha chegada sempre me saudava: Chegou a apressadinha! Aquilo me inquietava, mas eu seguia. Meses depois, no final daquele ano sofri um AVC e recordo que , passado o susto, no hospital eu refletia muito, sobre o susto, retomava a minha vida, mas uma questão me perseguia: Porquê eu era apressadinha?
De lá para cá essa reflexão sempre volta, e hoje, ao ver a menina negra passando percebi, que eu, apesar de toda a reconstrução que o re-conhecimento racial me possibilitou, eu ainda continuava correndo, ainda muito mobilizada por toda aquela corrida apressada que começou ali, na menina negra que não querendo ser violentada, não querendo ser vista, aprendeu a andar depressa para se proteger de tanto sofrer.
Desde o AVC até aqui, sete anos já se passaram e hoje a visão da menina negra que passa, me convida a reconectar-me comigo mesma, a lembrar de mim e somente lembrando de mim, poderei cada vez mais me irmanar e imediatamente atuar no empoderamento dessa e de cada menina negra que passa tentando ser sombra e não ser vista.
Convido a cada uma de nós a buscar suas fotos de infância, e principalmente buscar nas mulheres que somos hoje as permanências, muitas de nós ainda correm, muitas de nós ainda não se permitem andar no meio da calçada, sentido o vento, a chuva ou sol na sua pele. Reprogramemos nossos corpos e acenemos alegremente para as meninas negras, as que passam na calçada e as que vivem dentro de cada uma de nós.
13 comments
Viviana senti suas palavras na alma.
Um beijo, Etiene.
Simplesmente linda a reflexão. Lendo este depoimento, não tem como não lembrar de nós mesmas na infância, na adolescência e até mesmo na fase adulta. Me recordo também de tantas meninas negras que passam por nós. Que ao passarmos por estas meninas, possamos olhá-las no fundo dos seus olhos, reconhecendo-as como meninas lindas que são. Parabéns pelo texto e obrigada por nos fazer refletir e nos reencontrarmos como mulheres negras que somos.
Aline, é isso mesmo!!! Olhemos as meninas no fundo dos olhos!
Parabéns pelo texto, Vivi. Belíssimo texto!
Vivi, amei teu texto!!! Parabéns a tu e a mulheres negras, e de todas as cores. Raças e credos !!! Nós que nós reencontramos em nós mesmas!! Bjs Lu faria
Lu que alegria que tenhas gostado!!! cheiro
Viviana estou conhecendo o blog hoje e estou digitando verdadeiramente com lágrimas nos olhos. Me vi em sua história. Me vi chocada quando na adolescência algum garoto se declarava para mim. Essa menina negra que passa sou eu… Obrigada pela oportunidade de reflexão e por retratar de maneira habilmente poética o que eu jamais saberia colocar em palavras. Feliz por conhecer o blog!
Querida Laura, é uma alegria imensa poder estar irmanada contigo nesse ser menina-mulher negra. revisitese, descubra sua beleza, sua força, sua graça. andemo juntas.
É sempre maravilhoso exaltar uma criança negra e ter a consciência que nossas palavras, nossos elogios podem mudar a forma como ela se vê e se comporta enquanto ultrapassa sua infância. Lindo texto.
Que texto lindo, eu choro quando leio essas coisas… é algo que não sei explicar…
Viviana, linda e emocionante história!!!
Percebi que em inúmeros momentos da minha vida, também quis sumir, não ser vista e o que é pior, não ser a menina negra. Queria ser a menina de cabelos esvoaçantes, olhos claros e pele branca, que na escola e em todos os lugares que eu ia, era a mais notada e elogiada por todos. Enfim, o tempo passou e por sorte consegui perceber que eu estava equivocada, que o problema não era comigo e sim com as pessoas que não conseguiam e nem se abriam para ver a beleza que existia em mim, na menina Viviana e na menina que passava quase “colada” no muro. Que o problema era de uma sociedade alienada e iludida por padrões europeus e totalmente diferentes da nossa realidade.
Viviana, gratidão por poder ler e compartilhar uma história como essa, tão parecida com a minha e de muitas mulheres negras desse Brasil. Beijo grande e muita luz para você sempre.
Agradeço tua bondade em me contar e me permitir me irmanar com mais uma menina-mulher negra e perceber que se sofremos o mesmo, também ressignificamos e ressignificaremos cada vez mais nossa existência. um cheirp,
Pois eu AINDA gostaria de ser essa menina, de beleza notória, de cabelos esvoaçantes, sendo negra ou não, a que todos olhassem e achassem linda, que desejassem namorar, que derramassem uma chuva de elogios em mim…pq de que adianta SÓ EU achar isso, quando na opinião da MAIORIA das pessoas a beleza mais aceita pra relacionamentos e ser exibida a todos é a eurocêntrica?? ´´E como ter um super talento que fica limitado só a mim, não procede. Uma das maiores necessidades do ser humano é ser aceita/o (Maslow), sendo assim, queremos ser valorizados pelo que somos, não importa a circunstância. Sem isso, não somos nada!! Eu não recebo trocentos elogios em fotos minhas no face e percebo que não importa o quão produzida eu esteja, simplesmente eu NUNCA vou ser bajulada como essas meninas de cabelos lisos e pele clara, de sorriso certinhos, ser disputada, chamada de linda por N vezes, e pra que alguém goste MESMO de mim como sou,. só com convivência e com a sorte de encontrar alguém q que aprenda a me ver como sou por dentro também. .