Este texto marca o início de um novo ciclo pra mim. O retorno de Saturno vem e com ele as mudanças também. Muita coisa tem mudado aqui dentro, a começar pelo meu movimento de voltar a falar. E é impossível falar do meu processo de retomar à fala sem voltar lá atrás, onde tudo começou.
Já faz uns anos que eu sentia a minha vida passando e eu a estava olhando passar pela minha frente, inerte, sem conseguir me mover. Não é o que parece de fora. Por fora eu sou a pessoa dos movimentos, nem todos os movimentos que faço parte estou em evidência, mas estou por detrás dos bastidores de muitos movimentos. E não digo movimento social, deste também já fiz parte, me organizando coletivamente, falo de diversos movimentos, de projetos artísticos, culturais e de ações sociais.
Mas por dentro eu me sentia sufocada, por muito tempo, já faz muito tempo. O sufocamento começou na infância, desde que eu nasci e vim a este mundo que insiste em negar voz e vez às pessoas de cor. E assim, pra atender às exigências da sociedade, que quer adestrar todas as culturas pra que a Europa seja o centro de tudo, fui criada pra ser uma pessoa polida.
Eu, que fui uma criança falante, sorridente, criativa, dançava muito, cantava, falava alto, gargalhava, falava demais, respondona demais, fui pouco a pouco sendo podada. Não culpo meus pais de forma alguma, eles fizeram o melhor deles, só estavam seguindo as regras de etiqueta da sociedade.
Até pouco tempo atrás esse sentimento de sufocamento fazia parte de mim. A inquietação de parar de me apequenar e iniciar um processo de fala começou no terreiro, quando fui abraçada pelas entidades que diziam que eu precisava ir atrás do falador (psicólogo), porque precisava de ajuda. E enquanto eu não ia, porque sou muito teimosa, fui buscando formas de falar e botar pra fora o que tinha que sair.
O pontapé inicial foi a série de lives que criei em abril de 2020, o Dandariando, que deriva do segundo nome que adotei pra mim, Jéssica Dandara. Neste mesmo período eu tive um sonho com Iansã, e ela, que é a dona dos meus caminhos, apareceu pra mim na forma de uma mulher com um vestido vermelho e uma adaga na mão, me defendendo de um homem furioso que queria me atacar. Oyá veio me trazendo bons ventos e mostrando que a minha vida tinha que ser mais do que um movimento para os outros, a minha vida precisava caminhar em prol de mim também.
O Dandariando se tornou um projeto, rentável, inclusive. No dia 15 de abril lancei o primeiro episódio do Dandariando Podcast, com o Dayrel, criador da página Funkeiros Cults. Neste episódio eu trago um pouco de mim, da minha relação com o funk e com a literatura. Falar dos meus processos só foi possível, além do meu esforço, graças à Orixá, muito banho de folhas, conversas com entidades e psicoterapia.
Quero explicitar que o Dandariando não é e também não o vendo como um projeto político, organizado coletivamente, etc, não tenho pretensão alguma de apresentá-lo assim. Trata-se de um projeto pessoal, mas já faz um tempo que eu escolhi que o meu trabalho deve significar algo relevante, não só a mim. É lógico que eu trato de temáticas sociais com responsabilidade, por tudo que eu aprendi no movimento social, mas essas questões não são pretextos pro podcast acontecer.
O Dandariando faz parte de um momento em que eu retorno a mim mesma. Minha fala de efeito é “As nossas vozes precisam ser ouvidas”, porque é importante se expressar. Falar é existir no mundo, e no podcast eu trago outras pessoas pra falar comigo, porque não quero falar sozinha, porque não existo sozinha no mundo. Eu só estou aqui porque existiram resistências coletivas.
Apesar de toda a consciência política que eu tinha, sobre a importância de transformar a fala em ação, como nos ensinou Audre Lorde, não foi o suficiente pra que eu conseguisse pôr em prática o tanto de aprendizado nos anos de movimento social. Sei que ela fala de questões coletivas, não de vozes silenciadas individualmente, mas às vezes, até pra se organizar politicamente, coletivamente, a gente precisa parar pra se cuidar e retornar a si mesma. Perdidas, não encontramos rumo algum.
Nem todes têm aptidão para a escrita ou fala, mas essas não são as únicas formas de expressão, pois há outras formas de estar no mundo. O audiovisual, artes visuais e imagens também comunicam. Nem todas as formas de se expressar serão entendíveis a todes, mas certamente temos alguma em que nos identificamos para fazer ecoar a nossa voz, que faz com que a gente exista, e tudo faça sentido, e é dessa “alguma” que a gente precisa se apropriar, pra que a nossa existência não seja negada. Não mais.