.
.
.
.
.
.
.
5h46 da manhã.
Depressão é coisa da branco!
Eu preciso dormir.
Vou tirar o som da TV. Virar pro lado da parede!
Depressão é coisa de branco!
Preciso dormir!
Preciso dormir!
A claridade vai chegar…
Preciso dormir…
Preciso escrever! Depressão é coisa de branca/o. Eu não posso ter depressão. Quem tem depressão precisa de cuidados, de papas na língua, de temeridade. Eu sou uma cuidadora! A lei da minha raça é cuidar! Eu não posso ter depressão! Me ensinaram assim.
Há uma grande dicotomia no meu inconsciente: “Depressão é uma condição psíquica muito séria. Precisa de atenção. Precisa ser levada com seriedade e a pessoa diagnosticada com depressão deve ser levada à sério.”
O outro tem depressão. Eu não posso ter depressão.
Eu preciso tomar as rédeas da minha vida, traçar uma trajetória de vida, emagrecer, começar a me virar sozinha. Preciso fazer valer a minha voz nos espaços de militância. Não há barreiras, custos ou limitações.
Essa foi uma escolha política – o político é pessoal.
Eu compro brigas; quase que totalmente sozinha na minha trincheira. Estou fazendo porque essa foi uma escolha pessoal – o pessoal é político. Me jogo em direção ao abismo, em prol de uma ideia de coletividade que se une pelo pertencimento à uma raça. Foi uma escolha minha. Eu não posso ter depressão!
Depressão é coisa de branco!
Sigo intrigada: numa sociedade em que ainda temos de batalhar pelo combate ao racismo no Sistema de Saúde, a precarização do atendimento básico à população negra se dá nos cuidados primários, alocados no que se convenciona chamar de Atenção Básica em Saúde.
Somos a parcela da população que mais sofre com a ausência de pré-natal, de higiene bucal adequada; com autos índices de mortandade infantil, problemas cardíacos e enfermidades como diabetes e hipertensão.
Nesse contexto de precarização total e irrestrita, não é de se espantar que, para a população negra, o cuidado com a saúde mental seja uma pauta ainda distante. Mas porque a preocupação? Negro tem psiquê?
Depressão é coisa de branco! Eu não posso ter depressão!
O racismo trabalha com a desumanização da população negra por meio de sua inferiorização e subjugo. Isso não é novidade!
Ocorre no romance “O olho mais azul” (The Bluest eye), da escritora estadunidense Toni Morrison, com a personagem Pecola, como ocorre na vida real, com meninas reais.
O racismo que incide sobre cada molécula de melanina da menina, trabalha com a desqualificação de sua personalidade, numa construção transversal de racismo e misoginia; minando o desenvolvimento de sua autoestima e a possibilidade da construção de um pacto de cuidado entre a menina e sua mãe, Pauline.
Ser negra, para Pecola e para meninas contemporâneas à mim, é conviver com a fragilização e com a necessidade de escondê-la. Nossa auto imagem é distorcida por padrões brancos de uma sociedade que nos impõe cabelo, nariz, boca, formato do corpo. Esta mesma sociedade também nos impõe papéis pré definidos: o trabalho, a força, a resignação. Não há espaço para que uma psiquê fragilizada possa habitar o corpo de uma mulher negra.
Não cabe no nosso papel de cuidadoras, de objeto sexual, de mantas kevlar, trabalhar nossas subjetividades. Não há subjetividades para corpos vazios. E é isso que devemos ser: corpos vazios, subordinados, resilientes.
Nós não podemos ter depressão! Depressão é coisa de branco!
Ser negro implica uma herança colonial, uma memória de povo sequestrado e escravizado; implica a herança de traumas passados de geração à geração, cunhados e cultivados em corpos de mulheres negras. Cada uma de nós sabe aquilo que herdou.
Eu herdei o repúdio ao meu corpo, à percepção da minha auto imagem. Herdei, também, a obrigação constante de me conter:
“Fala baixo!”
“Se comporta!
“Fica quieta!”
“Engole o choro!”
“Para de drama!”
Então eu desenvolvi uma capacidade teatral ímpar, fui treinada a diferenciar em personagens, as experiências que vivenciava no público e no privado.
Uma vez mais, a articulação transversal entre misoginia e racismo tentando silenciar mulheres negras. Como tantas da minha geração, tive a sorte de ser criada para ser independente. Para obter um desenvolvimento intelectual, traçar uma trajetória acadêmica; mas em silêncio.
Estamos invadindo espaços dominados por pessoas brancas, ocupando espaços e abrindo caminhos. Mas fomos ensinadas que a distensão desses caminhos deveria ser feita em silêncio.
E como sobreviver à experiência de desenvolver nossas psiquês sob um voto de silêncio?
A experiência empírica diz: impossível. Nos contorcemos, distorcendo nossa capacidade de resistir. Nos expomos, gritamos, colocamos a cara no sol. Nos queimamos. Investimos, resistimos, e gritamos. Num segundo estamos roucas. No outro, sozinhas. Mais um instante e a trincheira se volta contra nós.
Em pouco tempo, mentalmente adoecidas.
A nossa existência deve ser celebrada. Me sinto acorrentada a esse corpo. Presa nessa carcaça preta e gorda, que está inadvertidamente marcada. É possível não sucumbir dentro dela?Há psiquê que a sustente? Depressão ainda é coisa de branco! E eu não posso ter depressão!
Eu preciso dormir!
Eu tenho muita coisa pra fazer amanhã!
Não consigo dormir!
Crise de ansiedade!
Eu choro!
Me desespero!
Eu tô tremendo!
Crise de ansiedade!
Acho que eu estou pirando!
Preciso me acalmar!
Respira!
Não consigo!
Respira!
Respira!
Crise de ansiedade!
Preciso me acalmar!
Preciso comer!
Preciso comer!
Preciso comer!
Preciso me acalmar!
Crise de Ansiedade!
Abro a geladeira!
Não tem o que eu quero!
Crise de ansiedade!
Preciso me acalmar!
Preciso comer!
Eu vou comer!
Eu como!
Eu choro!
Eu me acalmo!
Preciso dormir!
6h36 da manhã.
Preciso dormir!
6h38 da manhã.
Estou pegando no sono…
Depressão é coisa de branco!
Eu não posso ter depressão!
*Depressão é uma doença psiquiátrica, crônica e recorrente, que produz uma alteração do humor caracterizada por uma tristeza profunda, sem fim, associada a sentimentos de dor, amargura, desencanto, desesperança, baixa autoestima e culpa, assim como a distúrbios do sono e do apetite. Fonte: http://drauziovarella.com.br/letras/d/depressao/.
*Psiquê: […] é uma palavra relacionada com a psicologia, e começou a ser usada com a conotação de mente ou ego por psicólogos contemporâneos…”. Fonte: http://www.significados.com.br/psique/.
Imagem destacada: Ethiopia photo shoot, I Love Being Black