O nascer do dia… Nunca pensei que o nascer do dia fosse significar tanto quanto significou naquele momento em que me senti só. É como se a luz do sol sorrisse para mim, como se abrisse os braços e quisesse me acolher. Foi estranho. Foram poucos minutos. Mas, nossa, eu não saberia explicar o quanto significou. Éramos só eu e o nascer do sol contra o mundo. E naqueles poucos instantes eu esqueci de toda minha carga. Esqueci o tapa que ele me deu. Esqueci aqueles olhares de reprovação na praça Doleto. Esqueci as risadas do fundo do ônibus. Esqueci os apelidos. Esqueci a rejeição daquele que dizia me amar. Esqueci as cantadas. Esqueci aquela mão invasiva. Esqueci a promessa não cumprida. Esqueci a perseguição. Esqueci meus próprios gritos naquela tarde de quarta. Esqueci a traição. Esqueci a explicação do porque eu existia segundo aquele homem branco no carnaval passado. Esqueci aquela vez que fui trocada como se fosse mais um brinquedo usado qualquer. Esqueci até mesmo o gaslighting, algo que eu jamais pensei que pudesse esquecer. Aquilo me parecia tão bom. Eu estava esquecendo tudo que foi tão horrível pra mim. Eu estava sorrindo. Poderia ser melhor?
Uma sombra. Uma sombra no chão foi o suficiente para eu acordar. Não uma sombra qualquer. Era a minha sombra e principalmente meu cabelo pro alto em evidência naquela sombra destorcida com a água da chuva da noite passada. Ah, aquilo fez eu olhar para dentro de mim e perceber que não, eu não queria esquecer nada daquilo. Esquecer seria muito bom sim, mas melhor ainda é pegar toda minha vivência e transformá-la em luta. Eu quero lutar. Eu preciso lutar. Minha vivência me dá forças. Não é nada fácil viver com as lembranças. Mas o fato é que as coisas nunca foram muito fáceis para mim, e eu nunca fui de reclamar também. E por mais que eu tenha razão em reclamar, eu prefiro me impor. Foi me impondo que hoje eu tenho a maioria das cargas que carrego. E não sol, não vou fugir apenas por me sentir sozinha. Eu me sinto sozinha sim, mas eu não estou sozinha. Somos muitas. Lutamos juntas. E a luta é por todas. Silenciamento não, por favor.
Ah, o nascer do dia… Sim, uma energia maravilhosa e um calor aconchegante. Não era bem o sol que queria sorrir pra mim, mas é como se o sol representasse todas minhas irmãs de luta. Era como se todas elas abrissem os braços e quisessem me acolher. Eu me sinto abraçada por elas tanto quanto quero abraçar. Temos a nós mesmas e aqueles que nos apoiam. Não irmã, nunca deixe que eles falem por nós, eles não passaram/passam pelo que passamos. Apoiar é diferente de se apropriar. Não aceite apropriação, de nenhum tipo. Respire, cante, dance. Faça algo que te deixa realmente feliz, porque sim, eles, muitas vezes, vão tentar tampar o nosso sol, vão tentar fazer que tu não vejas o nascer do dia, e se não conseguirem, vão tentar fazer com que tu se esqueças e abandonas tuas cargas, vão dizer que estás sozinha, só você e o sol, porque isso facilita o trabalho deles contra nossa união, mas não os escute. Tu se sentes sozinha, mas não irmã, tu não estás sozinha. Me abrace, e se eu não estiver perto, pegue algo que possa me representar, assim como o sol representou vocês, minhas irmãs negras, na manhã em que me senti sozinha, assim como tantas outras mulheres pretas, assim como tantas outras manhãs.