Acabamos de sair de março, mês em que completaram-se cinco anos do assassinato político da vereadora Marielle Franco. Vivemos, no Brasil, uma transição do governo Bolsonaro para Lula, reconstruindo as ruínas que a extrema-direita deixou na política institucional, embora ainda esteja permeada na sociedade. Marielle Franco foi uma mulher negra, defensora dos direitos humanos, ativista LGBTQIA+, vereadora eleita pelo PSOL-RJ com mais de 46 mil votos e autora do Projeto de Lei da Visibilidade Lésbica. No dia seguinte ao seu assassinato, foram inúmeras as difamações, injúrias e calúnias contra Marielle. Havia acusações, inclusive, de ligação com o tráfico. Basta lembrarmos do caso da desembargadora que distribuiu fake news e discurso de ódio nas redes sociais. Absolvida, a desembargadora afirmou que foi “enganada por uma campanha de boatos nas redes”. Ora, onde fica a responsabilidade da pessoa que contribuiu com essa rede de mentiras e ódio? Este episódio remonta ao conceito de banalidade do mal, de Hannah Arendt, sobre o julgamento de Eichmann em Jerusalém. A desembargadora, munida de conhecimento e de legislação, não teria a consciência dos efeitos e das consequências ao disseminar boatos sobre uma mulher negra que amava publicamente mulheres?
Este não foi um caso isolado de ódio contra Marielle Franco. Sob a justificativa de imunidade parlamentar, foram inúmeros os políticos que usaram suas redes para ampliarem e promoverem discursos de ódio contra uma mulher negra eleita. Queriam assassinar sua memória, achincalhar o luto, desrespeitar seu legado, dilacerar o imaginário. Vivemos um trauma coletivo, um luto que atravessou cada mulher negra como uma flecha que não deixa de sangrar. Muitas de nós sem chão. Mesmo diante desse cenário, as redes sociais e a própria mídia foram esteio de desrespeito à sua memória.
E até hoje vemos esse tipo de ação. O Levantamento feito pela Lupa no Facebook, Instagram, Twitter, YouTube e TikTok mostra que as plataformas falharam ao longo dos anos para frear falsas narrativas criadas em 2018 e mantêm discursos de ódio e mentiras contra Marielle. O estudo ainda aponta que os ataques se estendem à irmã, Anielle Franco, atual ministra da Igualdade Racial.
A intelectual Lélia Gonzalez já apontava: “A mulher negra é o grande foco das desigualdades sociais e sexuais existentes na sociedade brasileira. É nela que se concentram esses dois tipos de desigualdade, sem contar com a desigualdade de classes. O que percebemos é que, na nossa sociedade, as classificações sociais, raciais e sexuais fazem da mulher negra um objeto dos mais sérios estereótipos”.
É importante observar que os discursos de ódio, estereotipados e cheio de calúnias, difamações e injúrias são amplamente repercutidos pela sociedade, tanto nas redes sociais quanto nas ruas. Em relação às mulheres negras LBT’s, estas narrativas amplificam durante o período eleitoral. De acordo com a “Análise do Ecossistema da Informação (IEA) da população LGBTQIAP+ negra da cidade do Rio de Janeiro”, realizada pelo DataLabe com apoio Internews, 54% das pessoas entrevistadas afirmaram que sentem que o discurso de ódio aumenta no período eleitoral. Para além dessa escalada da violência política, há uma informação na pesquisa que revela o “pavor da violência física, sexual e psicológica”, afetando a participação de negros LGBTQIAP+ no processo eleitoral. Segundo a análise, “houve sujeitos que afirmaram não terem tido vontade de ir votar, frente aos diversos ataques que uma parcela da população sofreu, sobretudo negros e LGBTQIAP+”.
O pensamento e a estrutura racistas que produzem e/ou disseminam essas narrativas estão alicerçadas num processo de desresponsabilização e de desumanização da população negra, impedindo o exercício da cidadania e a participação política. Esse processo de desumanização advém de um longo e violento processo de colonização e escravização que é refletido nos meios de comunicação e nas estruturas sociais.
Ainda há muito a avançar para que nós, mulheres negras LBTQIA+, possamos acessar e permanecer na política e nos espaços de poder sem risco à nossa vida. Para isso, é preciso uma atuação firme do Estado na regulação social e econômica das plataformas digitais que não podem banalizar a violência racial, de sexualidade e de gênero altamente disseminada. Nesse processo de luta e resistência, temos a comunicação popular e comunitária LGBTQIA+ negra de modo a ampliar os nossos imaginários e construirmos uma sociedade onde possamos afirmar e ecoar nossas identidades sem sermos alvos e combustível para violência. Nós, mulheres negras LBTQIA+, não seremos interrompidas.