Oh, como foi difícil chegar até aqui. Quando pequena, jurava de pés juntos para as pessoas que eu não era negra e, como prova, mostrava as palmas das mãos, dizendo-lhes “veja, estou ficando branca.” Era doloroso ser chamada de ‘neguinha’, quando, na verdade, queria que me chamassem de Branca de Neve, o que seria uma grande e completa ironia. Sempre foi assim, um dramalhão negro ao redor da realeza branca e, por isso, contarei a minha própria história.
Minha mãe sempre trabalhou como doméstica em busca do sustento, do tal pão de cada dia. Justo quando eu era um bebê, trabalhou em uma casa de família e, por consequência, tinha que me levar até o serviço todos os dias. Ironicamente, a dona da casa havia operado para não mais ter filhos, não tinha nenhuma menina e pediu para que minha mãe deixasse eu ficar por lá. Sim, minha mãe aceitou a proposta (um dia desses questionei esse ato, e ela disse que fez isso porque queria que eu tivesse o que ela não poderia dar para mim e muito menos para meus irmãos).
Conforme o tempo foi passando, eu fui notando que eu não era como os outros. A família era branca e eu, notavelmente, era uma intrusa. O meu cabelo, o meu nariz, a minha boca e a minha cor: essa junção era completamente diferente do que eu via nas outras pessoas. Eu me sentia à margem de todos, inferior porque eu era mais escura e tinha o cabelo “duro” (um grande insulto aos cabelos crespos e cacheados).
Era difícil em casa, pois um dos filhos da minha mãe de criação me chamavam de ‘macxcx’ e de ‘urxbx’, mas eu parei de me importar, passei a achar um ato completamente normal e ria. Na pré-escola eu recebi todos os tipos de apelidos possíveis, desde Negrinho do Pastoreio a Tia Anastácia (figuras completamente submissas segundo seus autores e contexto histórico), mas eu ria e mostrava a palma da minha mão, dizia que estava em processo de clareamento. Tudo pesava sobre minhas costas só porque eu tinha essa cor, por que essa cor? Eu não entendia o porquê.
Tudo o que eu fazia era por causa da minha pigmentação, pelo menos era a impressão que me passavam. Se eu errei, foi porque eu era preta; se eu acertei, foi porque eu era preta. Então, tudo o que eu poderia ter feito na vida seria por causa da minha cor, e não por causa das minhas capacidades. Pelo menos não por aqui. Então, começou o processo de clareamento: cabelo liso e amigos brancos.
A moda da progressiva tinha começado a pegar quando eu tinha 8/9 anos e, então, todas as negras tinham cabelo liso, era um orgulho ter o cabelo parecido com o da Taís Araujo em uma das personagens que ela atuou. Finalmente eu poderia ter uma uma franja para cobrir a minha testa grande, era fantástico! E quem disse que eu andava com as garotas negras? Jamais! Eu andava é com as brancas, pois as negras pareciam ter vindo das favelas do Rio de Janeiro (não sei da onde eu tirava essas coisas). As minhas amigas brancas sabiam como se vestir, como conversar e eram super inteligentes, qualidades que eu não conseguia visualizar em uma garota negra.
Um dia, fui a um parque de diversões em uma excursão e marquei de encontrar algumas pessoas que havia conhecido online. Lembro-me como se fosse ontem, eu tinha visto uma garota branca com um black power enorme e fiquei assustada, horrorizada.
Ironicamente, dividimos o banco em um brinquedo e ela me disse que eu deveria assumir os meus cachos, pois realçaria uma beleza real em mim. Sábias palavras.
Daquele ano em diante, dei jus à transição eurocêntrica para a afrocêntrica.
Admito que não fiz isso certo. Deixei meu cabelo ao natural, mas continuava abominando negros e fazendo piadas maldosas contra eles. Engraçado, pois eu também fazia parte das piadas e aprendi a levar isso como uma brincadeira de bom gosto.
Quanta audácia da minha parte! Recentemente, há cerca de dois anos, ouvi de outra garota branca que eu reproduzia racismo e que eu deveria passar a estudar sobre o que era isso, segregação e resistência negra. Poxa, como uma garota da pele clara tinha consciência disso e eu não? Doeu tanto, me senti à margem novamente, só que, dessa vez, eu é que estava me inserindo em uma realidade que não era minha, em um pensamento coletivo que não mencionava quem lutou e quem possibilitou que eu estivesse entre brancos. O que seria isso? Era espantoso saber que eu admirava a Marilyn Monroe e que nunca tinha ouvido falar sobre Angela Davis. O que eu era, afinal? Eu era uma mentira.
Hoje, mais do que nunca, eu busco saber quem lutou e quem deu espaço para que eu pudesse escrever sobre o quanto eu amo a minha cor, o meu cabelo, a minha boca e o meu nariz. Não tenho mais que dizer que sou morena, mulata (sic) ou que estou em fase de branqueamento. Eu sou negra, tive pessoas que lutaram por mim e que mostraram ao mundo que o negro tem voz. Descobri que não somos piadas e que deve haver revolta quando elas são feitas. Sim, nós temos que nos revoltar!
E foi assim que (re)nasceu uma pérola negra.