Doença de branco

“Sara, sara, sara cura

Dessa doença de branco” (Sarará Miolo, de Gilberto Gil).

Temos afirmado que o racismo é uma doença que afeta todos, não apenas os brancos. É uma anomalia social, que nos enleia nos sentidos da desumanização do outro. No caso brasileiro, do outro ser humano que é negro. Independentemente de nossa origem étnico-racial, participamos desse processo histórico, e o nosso desafio é nos tornarmos conscientes de sua existência, denunciá-la e, enfim, buscar mecanismos para sua superação.

A latente agressividade da pessoa, branca ou não-branca, consequente dos tipos e níveis de frustração que afetam diferentemente a esses dois grupos, encontra na população negra um alvo culturalmente definido e — adotando ironia expressa no que escreverei — claramente denegrido.

A jovem protagonista do curta-metragem Vista Minha Pele, de 2003 (dirigido por Joel Zito Araújo e distribuído pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT), torna-se porta-voz de uma série de críticas inauditas, quando aponta que a discriminação racial não é problema só para os negros.

Muito se fala e se escreve sobre o racismo, mas quase nunca se considera o quanto temos a ver com ele, como indivíduos ou integrantes de grupos sociais em um contexto de dominância social cujos valores, discursos e instituições reiteram cotidianamente a segregação entre brancos e demais populações marcadas pela aparência, por suas características fenotípicas, em especial os negros, que compõem a maioria da população brasileira.

Vale nos concentrarmos um pouco em uma das dimensões do racismo nas quais a ciência psicológica precisa se aprofundar: a branquitude, que posiciona as pessoas brancas ideais como referencial de humanidade e valor a ser alcançado por todos, por meio do branqueamento.

A psicóloga Maria Aparecida Silva Bento, do CEERT, a qual criou o argumento do Vista Minha Pele, desenvolve, há décadas, pesquisas sobre a temática, e tem demonstrado que a crítica ao branqueamento comumente se foca nos negros, como sujeitos passivos que se permitem embranquecer, e com isso falha em reconhecer que ele é parte do mecanismo de poder da elite branca sobre a massa negra, quando esta só vislumbra alguma ascensão social ao minimizar ao máximo ou esconder seus traços africanóides, o fenótipo que a localiza no espectro racial discriminado.

Desde o filósofo alemão Friedrich Hegel se reconhece que a dialético servo-senhor incorre não apenas na subalternização do servo, como ser humano inferiorizado, mas igualmente o senhor depende dessa relação degradada para se afirmar como uma consciência independente, a qual nenhum dos dois (mestre e escravo) jamais será enquanto co-existirem nessa relação assimétrica.

O terrível legado do racismo para as pessoas brancas, expresso na branquitude como afirmação de uma suposta superioridade destas sobre as pessoas negras, é um privilégio sócio-econômico e imagético que se transforma, igualmente, em um autoconceito precário, dependente da discriminação de negras e negros, e em nível coletivo, configura-se como uma defesa oligárquica de interesses que exclui dos processos democráticos parcela significativa da população, que “lava as mãos” frente a determinadas injustiças sociais.

Os brancos, nessa posição privilegiada, adoecem, vivem um deslocamento frente ao outro negro que está excluído, e quando não reconhecem o sofrimento causado pelo racismo, em decorrência do preconceito, do medo ou da ignorância (ou termos técnicos, da colusão, quando se discrimina sem perceber), recusam dimensões fundamentais de sua própria humanidade e do projeto histórico da cidadania: o afeto com relação ao outro, o princípio da solidariedade e a empatia com o mal-estar alheio.

A doença do branco que se contenta com o privilégio é, em um nível profundo, a necessidade “antropofágica” de assimilar a opressão sobre o negro como um elemento de sua identidade pessoal, e em um nível mais visível, ensina Bento, é o medo, senão o pânico, que se expressa muitas vezes como um rancor inexplicável com relação ao outro negro, um ódio narcísico do “meu” grupo contra o outro.

Este outro se torna o símbolo do risco da degeneração física e moral, enquanto o eu branco se reafirma, retoricamente, como o sujeito universal, o modelo físico e moral de uma humanidade idealizada.

As limitações psicossociais impedem a formação de uma democracia de fato, porque os cidadãos negros ainda são vistos como “coitados”, senão como responsáveis por sua própria situação, e que precisam da “ajuda” dos brancos incluídos. A desigualdade perpetuada nos corações e mentes não pode ser mudada nos gestos e decretos.

Há aí a prevalência de um pensamento assistencialista, que impossibilita uma auto-crítica e uma hetero-identificação com o humano no outro; não há, nessa lógica, o reconhecimento de que o empoderamento da população negra passa pela afirmação de sua igualdade, em termos de humanidade, com os brancos.

As ações afirmativas, nesse sentido, configuram-se como bases de um paradigma novo, que assume a necessidade de reparações ao passo em que aponta para a necessidade de se modificar o ambiente social em que negros e brancos convivem sem isonomia.

Como lidar com a realidade nefasta da branquitude é um desafio teórico e prático que se coloca aos pesquisadores, gestores e ativistas. No que tange ao campo da saúde mental, destaca-se a identificação dos altos custos psicossociais decorrentes do racismo, como sistema estruturante da sociedade, tanto para os sujeitos que por meio dessa ideologia são oprimidos (negros) quanto para os que a partir dela são socializados em um perverso papel de opressores, mesmo que não reconheçam (brancos).

Imagem destacada: Hubpages – Pinteres

1 comment
  1. Nunca comprei nada da arezzo,mas achava lindo os sapatos ,agora lendo esse post agora que nunca irei comprar algo de uma marca que não aceita negras como vendedoras ,em pleno seculo XXl,ainda temos que ver esse tipo de coisa,lamentável

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Diametralmente oposto a esse padrão aceitável se encontra, por lógica, o corpo negro. O corpo negro, seus traços, sua genética, seu fenótipo e a infantil tentativa de negar a construção social que tem o gosto. Somos, todos nós – negrxs e brancxs – expostos desde crianças a propagandas, programas infantis, desenhos, revistinhas em que predomina um padrão de beleza europeu. “Gosto não se discute” porque a mídia já deliberou sobre ele por nós, apresentou-o e nós, como o esperado, compramos não só o gosto mas também o slogan. Continuemos sorrindo!