EQuando a Mulher Negra é a Professora? Um relato pessoal.

No ano passado enquanto participava de um curso de extensão Relações Étnicos Raciais e Educação, fui convidada a desenvolver numa escola de ensino fundamental um projeto que tratasse desse tema. Junto com uma amiga, professora da rede pública de ensino, elaboramos um projeto intitulado (Re) Descobrindo a África que está em nós.

No dia 22 de outubro, saí correndo às pressas do trabalho, para o primeiro dia da sequência didática e naquele misto de sentimentos e sensações vivi uma experiência que me marcou profundamente enquanto mulher negra e professora e me convocou a pensar que a discussão das relações etnicorraciais e educação, deve também passar pelo re-conhecimento da condição da professora negra na escola.

 Saio do trabalho atordoada o caminho até a escola é longo, é mais fácil percorrê-lo a pé do que tentar descobrir os complicados caminhos dos ônibus. Sob o sol escaldante das 13 horas sigo esperançosa olhando o céu azul e tentando imaginar o que viria a emergir nas relações estabelecidas durante essa tarde.

Depois de 25 minutos de caminhada, chego a escola: Enquanto estou do lado de fora, aguardando o porteiro destrancar o cadeado, escuto a zoada das crianças. Aberto o portão, enquanto caminho pelo interior da escola, a zoada parece que aumenta, e percebo um pouco assustada que o motivo agora sou eu: As crianças correm as janelas da sala e, às gargalhadas apontam, sorriem e gritam… é… estão falando do meu cabelo.

Sou tomada por um desejo de voltar até elas, problematizar essa experiência, discutir, ouvir, um misto de excitação e tristeza que me deixa magoada ao constatar a pequenez do mundo dessas crianças- negras em sua maioria- que ridicularizam a mulher negra que passa, não legitimando minha negritude, não se reconhecendo negras junto comigo e a partir de suas gargalhadas me exilando… mas ao mesmo tempo sou tomada pela pressa e pela urgência do desejo de construir com elas, aumentar esse mundo….vixi… tem que ter calma.. a hora vai chegar…

Chego a sala, escuto de fora a professora  Juliana explicando seus conteúdos as crianças, bato a porta, respiro fundo: Sei que vai acontecer de novo. E acontece! As crianças à minha visão, começam a ficar eufóricas e traduzem a estranheza perguntando a todo tempo: “Tia, de onde ela é?”

A professora Juliana disfarça as perguntas, me lança um olhar interrogativo e cúmplice, como quem diz: Eita e agora?! Aconteceu de novo, já havíamos conversado numa das aulas acerca de um episódio parecido. Ela acalma as crianças e diz: A professora Viviana vai explicar, calma.

Fazemos uma roda, me apresento, e partilho com a crianças o convite que trago para que participem conosco do projeto. Imediatamente vejo rostinhos de espanto e a gritaria: ÁFRICA??? Eu não sei NADA de África!!

Ouço com calma as explosões e faço uma provocação : “Hummm, então vocês não sabem nada? Então deixa eu tirar uma dúvida: – Quando eu entrei na sala vocês acharam que eu não era daqui certo? – Certo!! E de onde vocês acharam que eu era? – Da África!!!!todas e todos respondem a uma só voz. – Eita, parece que a gente sabe alguma coisa não é?

Um mãozinha se levanta:

– Mas Tia, porquê seu cabelo é assim?

Ufa!!! A oportunidade chegou!!

Converso com as crianças sobre meu cabelo, sobre os diferentes tipos de cabelos crespos que as pessoas usam, e as convido para olhar as fotos de pessoas de cabelo crespo em minha família.

Após olhar as fotos, as crianças voltam aos seus lugares, quando o cabelo encontra seu lugar, o resto se acalma.

Começam as atividades, buscando conhecer as representações de África. E foi tão duro: Tanta representação negativa, tanta fome, brigas, guerras, destruição, fogo, pessoas desnudas, tanta morenice….na construção dos cartazes o lápis preto é ignorado, a palavra negro é evitada…

No decorrer da tarde vou me entregando e me integrando as crianças, trazendo provocações para seus olhares, dúvidas que lhe possibilitem enxergar mais.

Enquanto a atividade se desenvolve vou ouvindo as meninas e meninos, reparo que há menininha, negra, gordinha e que fica sentadinha ao canto, desde o início da tarde ela me olha, observa meus gestos, escuta atenta minhas palavras, de repente, ao final da tarde, ela se aproxima de mim, toca levemente meus cabelos e com um ar sonhador diz mais para si do que para mim: “Queria eu ser africana…” me senti tão bem, tão inteira, plena, e devovida, acolhida e legtimada em minha negritude, crente na contribuição da educação para a luta antirracista e ouço cantos em minha cabeça, ao final do dia volto para casa leve, me sinto voar como uma borboleta (borboleta africana obviamente….)

Imagem de destaque: Baucemag

15 comments
  1. Poucos são os textos que emocionam e o seu, nobre professora, entrou no rol destes poucos e brilhantes relatos. O pacto do silêncio vai sendo quebrado e quem está na frente de batalha não é lembrado. Mas avança, cria, aplica, controla as emoções e trava uma batalha diária para vencer o preconceito.Parabens!

  2. Viviana,

    Passei por esta situação também na escola onde trabalhei, foi na EJA, a partir daí realizei um trabalho na escola e depois fiz um artigo que apresentei em um evento acadêmico.
    Se quiser, mande email q envio para vc.
    Este é o nosso papel.

  3. Viviana! Lindo e emocionante texto! Vivo as risadas diariamente ao adentrar a escola e nas salas. Sou muito alta rsrs e para complicar ainda mais a situação, sou professora de inglês. Sinto a reação deles e o estranhamento por muitos anos. Queria muito ajudá-los a desconstruir os esteriótipos.

  4. Viviana, gostei muito do seu texto!
    Não sou professora, não tenho tanto contato com os alunos, faço parte do quadro de apoio. Depois de começar a trabalhar na área da educação, não tem um só dia em que eu não enxergue a realidade dos alunos, sempre me coloco no lugar deles e é muito difícil, tem toda essa carência de informação e esse tipo de tema não é muito discutido por aqui e tenho certeza que em muitas outras escolas também não.
    Seria ótimo se todos tivessem essa oportunidade de se ver em suas raízes.
    Torço para que um dia isso aconteça!

  5. <3
    Suspirei fortemente ao ler este texto . Sou professora também e com o tempo fui percebendo o quanto as crianças que tinham contato comigo puderam construir sua negritude.
    Foi bonito de se ver e tenho muito orgulho disso. Por que eu gostaria muito de ter tido uma professora negra para me ver nela.
    Parabéns!

  6. Viviana, seu relato me fez lembrar das tantas vezes em que vivi isso em sala de aula, nas reuniões pedagógicas, nas reuniões com responsáveis…
    E agora, com meus novos alunos grandes de EJA, me vejo novamente – assim como você – ansiosa por discutir questões que nos tão caras e infelizmente cotidianas:”Professora, você é macumbeira ou é africana?”
    Há um longo caminho a ser percorrido.
    Seu post me deu mais confiança.

    1. O caminho e longo e arduo, precisamos estar sempre juntas, ter e ser presente de maneira fortalecedora….

  7. Também sou professora de geografia e história e trabalho vários assuntos sobre o Continente Africano com o objetivo de desmistificar preconceitos enraizados em nossa sociedade. Também observo dificuldades e até preconceitos que os próprios professores tem em relação a abordagem de assuntos relacionados a história, cultura , religião e luta do povo negro em prol da emancipação social, política e cultural, trabalhada nas escolas através da Lei 10.639/2003. Sabemos que ações pedagógicas concretas são essenciais para uma sociedade inclusiva , transformadora e capaz de mudar a mentalidade e o comportamento no enfrentamento do racismo. Parabéns pelo pelo trabalho. Zumbi somos nós!

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