De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2016, a maior parte da população é negra, com 54%. No entanto, como ressalta Iray Carone (2002), o mito da democracia racial, construído no século XIX, surge como uma ideia em que o negro negasse a si mesmo para que assim pudesse se integrar (ser aceito) na sociedade. O cruzamento racial não foi um processo natural, e sim determinado pela violência e exploração contra africanos e indígenas.
Contudo, esse ideário da mistura de raça reproduz o discurso que tende a apagar as contribuições africanas e indígenas, dando apenas espaço as narrativas brancas. E foi assim que aprendemos na escola e nos livros de história.
Lembro na minha infância que o dia 13 de maio a princesa Isabel era exaltada nas aulas de história. Não me recordo de ter aprendido que a África é um continente ou que Egito não fica na Europa. Não aprendi sobre Zumbi dos Palmares e Dandara, e as aulas no dia da Consciência Negra se limitavam a pintar um menino negro acorrentado. Não aprendi que o povo africano tem uma história bem antes da escravidão e que muitos, inclusive, eram reis e rainhas.
Nas aulas de literatura, Machado de Assis foi embranquecido. Nunca foram citados os livros de Carolina Maria de Jesus, apesar de muitos de nós morarmos no “quarto de despejo”.
Na graduação não somos a maioria nas salas de aula. Não temos professores negros. Os currículos dos cursos não nos contemplam com intelectuais negros.
Você já viu alguma jornalista negra como apresentadora? Quantas? E jornalistas brancos são quantos na maior emissora de tevê aberta? Lembrando que a população negra representa 54% da população nacional.
A palavra epistemicídio não está no dicionário, pois se trata de uma palavra inventada, ou seja, um neologismo, que é atribuição de novos sentidos a palavras já existentes na língua. “Episteme” vem de epistemologia, que significa conhecimento científico. O “cídio” vem de homicídio. Portanto, Epistemicídio vem da ideia do assassinato do conhecimento de alguém, neste caso da intelectualidade negra.
Eu comecei compreender um pouco mais a estrutura racista da sociedade brasileira que anula a intelectualidade negra na universidade. Encontrei como referência a filósofa Sueli Carneiro, que explica que o epistemicídio é a desvalorização, negação ou ocultamento das contribuições do continente africano e da diáspora africana ao patrimônio cultural da humanidade, ou seja, a ocultação da contribuição negra no saber.
A deslegitimação é uma modalidade de epistemicídio aplicadas a diversas populações não brancas. O produtivismo está a serviço do epistemicídio no momento em que bloqueia e emergência as outras formas de construção de conhecimento. Ou seja, o produtivismo compromete a diversidade das formas de fazer ciência.
Alia-se nesse processo de banimento social a exclusão das oportunidades educacionais, o principal ativo para a mobilidade social no país. Nessa dinâmica, o aparelho educacional tem se constituído, de forma quase absoluta, para os racialmente inferiorizados, como fonte de múltiplos processos de aniquilamento da capacidade cognitiva e da confiança intelectual. É fenômeno que ocorre pelo rebaixamento da auto-estima que o racismo e a discriminação provocam no cotidiano escolar; pela negação aos negros da condição de sujeitos de conhecimento, por meio da desvalorização, negação ou ocultamento das contribuições do Continente Africano e da diáspora africana ao patrimônio cultural da humanidade; pela imposição do embranquecimento cultural e pela produção do fracasso e evasão escolar. A esses processos denominamos epistemicídio (CARNEIRO, Sueli, 2005).
Sueli Carneiro (2005) ainda disserta que o genocídio que pontuou tantas vezes a expansão européia, foi também um epistemicídio. “Eliminaram-se povos estranhos porque também tinham formas de conhecimento estranhas. E eliminaram-se formas de conhecimentos estranhas porque eram sustentadas por práticas sociais e povos estranhos”. Essa ideia permite analisar a incapacidade de diversos grupos sociais de conviver com a diversidade. O epistemicídio atua como um conjunto de práticas educacionais de constrangimentos sociais, visando obstar a trajetória do sujeito negro como sujeito de conhecimento.
Com a colonização, a gente sabe o quanto a nossa cultura é negada e uma produção que se propõe o protagonismo de pessoas negras se torna uma forma de reconfigurar o mundo com as nossas vozes.
Enquanto eu escrevo – Grada Kilomba
Tuas epistemologias são nossas! Gratidão
Então, por que eu escrevo?
Eu tenho que fazê-lo
Eu estou incrustada numa história
De silêncios impostos,
De vozes torturadas,
De línguas interrompidas por
Idiomas forçados e
Interrompidas falas.
Estou rodeada por
Espaços brancos
Onde, dificilmente, eu posso adentrar e permanecer.
Então, por que eu escrevo?
Escrevo, quase como na obrigação,
Para encontrar a mim mesma.
Enquanto eu escrevo
Eu não sou o Outro
Mas a própria voz
Não o objeto,
Mas o sujeito.
Torno-me aquela que descreve
E não a que é descrita
Eu me torno autora,
E a autoridade
Em minha própria história
Eu me torno a oposição absoluta
Ao que o projeto colonial predeterminou
Eu retorno a mim mesma
Eu me torno: existo.
Referências:
CARNEIRO, Sueli. Construção do outro como não-se como fundamento do ser. 2005. São Paulo. Disponível em: <https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/a-construc3a7c3a3o-do-outro-como-nc3a3o-ser-como-fundamento-do-ser-sueli-carneiro-tese1.pdf>
SANTOS, Jaqueline Lima. A produção Intelectual das Mulheres Negras e o Epistemicídio. Disponível em:
BENTO, Maria Aparecida Silva; CARONE Iray. Psicologia Social do Racismo: estudo sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petropoles. 2002: Editora Vozes.