A Coordenadora da Articulação Nacional de Pescadoras (ANP) fala sobre o papel das mulheres na pesca artesanal e as estratégias criadas por elas para continuarem sobrevivendo dessa prática.
As pescadoras artesanais possuem um papel fundamental na segurança alimentar e na preservação dos territórios de suas famílias e comunidades. Nossa coordenadora de tecnologia Charô Nunes entrevistou a coordenadora da Articulação Nacional (ANP) de Pescadoras e educadora popular em saúde, Raquel Silva, sobre o papel das mulheres na pesca e as estratégias criadas por elas para continuarem sobrevivendo dessa prática diante de tantos ataques às comunidades pesqueiras e ao meio ambiente.
De acordo com um estudo realizado por pesquisadoras do Laboratório de Ecologia Humana (Labeh – CB/UFRN) com líderes de colônias e associações de pescadores das cinco regiões do Brasil, dos quase um milhão de pescadores artesanais, um terço são mulheres. As mulheres estão presentes nas atividades pré e pós-colheita do pescado, participando de toda cadeia produtiva da pesca, além de serem protagonistas nas mobilizações para garantia dos direitos da população pescadora.
Durante a entrevista, Raquel reforça a importância da valorização do papel feminino na pesca e relata os riscos vivenciados por essas mulheres cotidianamente diante de tantos crimes ambientais, das diversas ausência de políticas de apoio e proteção nos territórios de pesca e da chegada devastadora dos parques eólicos. Confira a entrevista em vídeo e texto!
BN: Raquel, você poderia nos explicar como a mulher está inserida na pesca artesanal?
Raquel Silva: A pesca artesanal ela é uma atividade pesqueira que as mulheres fazem tanto quanto os homens, então nós também temos mulheres pescadoras. Pescadoras de maré, pescadoras de engarape, pescadoras de mar aberto. Então a pesca artesanal é uma atividade pesqueira que as mulheres também estão inseridas dentro dela, tanto quanto os homens pescadores.
BN: Quem são essas mulheres que participam da pesca?
Raquel Silva: São diversas mulheres. A gente tem mulher negra, a gente tem mulher descendente de indígena, a gente tem mulher quilombola. São diversas mulheres que fazem parte dessa atividade.
BN: Sabemos que as mulheres pescadoras estão organizadas, mas explica um pouco dessa organização e quais pautas vocês geralmente discutem?
Raquel Silva: As mulheres da pesca, elas se organizam na base. Na base, dentro das suas comunidades, né? Fazemos rodas, atividades de trabalho e há uma organização nesse período de cada, essa é a organização das mulheres. Elas fazem o trabalho de organização, discutindo as políticas públicas para mulheres. Onde as mulheres têm a certeza de onde elas precisam estar, e é um processo de discussão. Elas discutem sobre saúde, sobre a educação, sobre política. Todas as políticas são discutidas ali naquele espaço, e nas rodas também, nas atividades. Daí a gente tem os nossos momentos nacionais, em que a gente leva todas as demandas. Daí sai também outras demandas desses encontros para que a gente possa estar trabalhando nas comunidades, fortalecendo as mulheres e dizendo para elas que elas podem estar onde elas quiserem estar.
BN: Desde quando a mulher pesca? Fala um pouco dessa luta pelo reconhecimento.
Raquel Silva: A mulher pesca desde sempre. Desde muito tempo, dos indígenas, as mulheres elas já eram pescadoras, entendeu? A atividade pesqueira é uma atividade muito antiga e aí o reconhecimento, a gente trabalha para ter o reconhecimento constante. É uma luta muito grande, a mulher ser reconhecida como pescadora. Inclusive foi criada uma Lei para a pesca artesanal, integrada a outro tipo de pesca também, que a mulher está invisibilizada nessa lei. Recentemente, nós fizemos um trabalho com uma organização, fazendo a revisão dessa Lei. E aí nós descobrimos nesse trabalho que a Lei da pesca, a mulher não está inclusa nela. A pescadora é considerada como apoiadora. Então o governo não levou em consideração que o beneficiamento é um tipo de pesca, não levou em consideração que a mulher morar na região pesqueira, ela é uma pescadora. Isso não significa que, eu não moro numa região pesqueira, não sou uma pescadora. Eu sou uma pescadora, porque meu pai foi pescador, minha mãe foi pescadora, meu irmão é pescador. Eu posso não estar exercendo, mas eu moro numa comunidade pesqueira.
BN: Uma das lutas das mulheres pescadoras também é a defesa dos territórios. Explica um pouco desse papel e quais os atuais riscos neste enfrentamento.
Raquel Silva: As mulheres são responsáveis por 80% dessa parte da defesa do território. Elas são as principais atuantes na defesa do território. Porque ela cuida do ambiente onde ela está, no ambiente que ela planta, ela colhe, entendeu? A mulher, ela não vai só para o mar pescar e retirar. Ela tem todo um cuidado. Nós somos mulheres, a gente entende que a mulher tem todo esse cuidado de estar tratando aquele espaço como sagrado, como seu. Algo que você poderá usufruir em outros momentos. E outras pessoas virão para usufruir daquilo ali. A mulher ela é a pescadora, ela é a responsável por estar cuidando de todo o território ameaçado. Inclusive as ameaças são constantes né? Dos grandes empreendimentos nas comunidades. Aqui no Brasil, em vários lugares, a gente vê falar nessa economia que está vindo aí agora, uma economia azul, que azul é uma energia limpa dentro das comunidades, aí a gente faz aquela dita pergunta: limpa para quem? Porque nós já recebemos a primeira invasão da energia eólica na terra, e deixou vários problemas que até hoje perduram nas comunidades, isso chegou matando lagoas, aterrando lagoas, desmatando mangue, acabando com as frutas típicas da nossa região, caju, murici, esse tipo de fruta a gente não vê mais com constância como a gente via antes. Então, a pescadora ao passar pelo caminho da pesca, vem percebendo e já percebeu que esse tipo de empreendimento que chega na comunidade ele não é bom, ele é ruim. E aí agora vem a economia azul que é a energia eólica no mar. E aí dentro do mar a situação é ainda mais agravante, porque restringe área de pesca. Peixe não gosta de barulho, as espécies vão desaparecer, gente vai vivenciar um processo daqui a algum tempo, se isso ocorrer, em que a gente não vai achar pescado fresco para se comer na feira, porque os pescadores vão começar a pescar e a estocar para poder vender. E aí a matéria prima fresca, a gente vai ter uma escassez muito grande. E isso acarreta sérios problemas de saúde, problemas mentais, psicológicos, porque aquele aerogerador, ele faz um barulho muito grande próximos das casas, as pessoas não conseguem dormir, ele derrama óleo, ele tem vários tipos de problemas que ocorrem nas instalações nessas usinas. E aí as empresas instalam, ficam recolhendo só os frutos, porque é a energia que nem no território fica, e os destroços ficam para as comunidades.
BN: Então essa energia não é tão limpa como eles dizem que é, certo?
Raquel Silva: Não. A energia dentro do gerador, para quem recebe, deve ser limpa. Porque a sujeira fica na comunidade. A gente já tem relatos que no Rio Grande do Sul, na maior lagoa que tem no Rio Grande do Sul, a Lagoa dos Patos, ela vai ter um posto de usina eólica. Imagina isso dentro de uma lagoa, o que isso não vai causar? E aí vai começar no mar, e no mar os problemas são bem maiores do que na terra, ou iguais, eu acredito que iguais.
BN: Além desses efeitos dos parques eólicos, que já são muitos danosos, como o lixo deixado nas comunidades e o sumiço de algumas espécies de peixe, que outros problemas impactam a vida das comunidades pesqueiras e a economia da pesca artesanal?
Raquel Silva: O impacto é muito grande. É como eu acabei de citar. O pescador vai ter que estocar e acumular pescado para poder vender. Porque vai haver uma escassez. Porque o peixe não gosta de barulho, e o pescador que pesca em alto mar, a cinquenta milhas, o pescador não vai conseguir, entendeu? Elas estão instaladas bem próximo das áreas de pesca. Outras, dentro das áreas de pesca. E aí isso é um impacto muito grande. A questão da escassez, quando tem a escassez de alimento vem a fome. Nós estamos passando por um processo agora, esse da pandemia, já tivemos a chegada do petróleo nas praias que foi também um dos impactos muito grande, que agora dia 30 de agosto fez 3 anos do crime do petróleo. Aí veja só como a comunidade pesqueira está bem impactada. O petróleo teve um impacto na economia de geração de renda, pandemia teve um impacto e continua tendo, porque a pandemia não acabou, na geração de renda, aí agora vem essa economia azul né, economia no mar, que também vai gerar um impacto na geração de renda, isso tudo nas comunidades pesqueiras, entendeu? Então o impacto é muito grande, principalmente para as mulheres, porque as mulheres são responsáveis, como eu já falei, por 80% da renda do território pesqueiro, aí o quê que ocorre, 80% para cuidar e 80% para gerar renda, quando tem um impacto como esse, cai consideravelmente. Como teve muita marisqueira, muita pescadora que sofreu com todos esses impactos e continuam sofrendo até hoje com todos esses impactos. Problema psicológico, problema financeiro, a fome, tudo isso a gente enfrentou no território pesqueiro e vem enfrentando.
BN: Como a sociedade pode apoiar as demandas das pescadoras e pescadores e quais as soluções que você acredita que são viáveis para enfrentar esse cenário devastador, que coloca em risco a vida de pessoas que vivem da pesca e territórios pesqueiros?
Raquel Silva: Nós estamos vivendo numa democracia, e que a gente está querendo colocar ela em prática, a gente estudou bastante esses últimos dias o que é democracia, eu acho que o primeiro caminho é a gente saber o quê que a gente está fazendo agora, saber o que a gente vai fazer daqui a 30 dias, né? Enquanto coletivo, é agir com muita articulação com as comunidades, a gente chamar a comunidade pesqueira, chamar o pescador, a pescadora e mostrar, e falar, e articular e trabalhar com que a gente consiga fazer com que o pescador e a pescadora eles criem uma resistência maior contra outros impactos que estão por vir. Isso não significa a gente mudar apenas o cenário político. Porque mudar o cenário político não significa que a nossa vida vai mudar num estalar de dedos, não vamos ter essa ilusão de que tudo vai se acabar, nossos problemas vão se acabar, os impactos vão parar de acontecer, as retiradas de direitos vão parar de acontecer, porque isso não vai. Isso é um trabalho constante, que eu acho que a gente está aqui enquanto movimento é para travar mesmo essas lutas e lutar por isso e isso está no sangue e a gente tem que seguir o fluxo dessa forma. Eu acho que se não existissem as lutas, não existiriam os movimentos.
BN: Agradecemos demais em nome de todas as Blogueiras Negras, e de todo o pessoal que vai ver esse seu relato. Como podemos encontrar o seu movimento, encontrar a articulação de vocês na internet e nas redes sociais?
Raquel Silva: Bem, a ANP Piauí ela tem um Instagram, recentemente feito pela gente né, nós estamos com um Instagram, se chama ANPPI. A ANP nacional tem um blog e é só clicar lá. E o MPP ele tem um Instagram, o MPP Piauí tem um Instagram e o MPP Brasil também tem um Instagram. A gente está lá inserido nas atividades do MPP. As mulheres estão lá.
BN: Fazendo a diferença!
Raquel Silva: Fazendo a diferença!
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Sobre Raquel Silva: Coordenadora da articulação nacional das pescadoras, representando o Piauí e representando nacionalmente a ANP. É formada em Educação Popular em Saúde e atualmente é educadora popular em seu município.
Acesse o blog da Articulação Nacional das Pescadoras
Instagram do Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP)
Equipe de redação:
Gravação e Entrevista: Charô Nunes
Edição audiovisual: Renata Dorea
Edição escrita: Wellington Silva
Revisão: Viviane Gomes