“porque a gente, que você amaldiçoa
em nome do seu amor doentio
normativo,
segregador,
a gente que é amante,
a gente é que vive y espalha
amor”.
Tatiana Nascimento dos Santos
bell hooks, em Vivendo de Amor¹, afirma que “muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou nenhum amor”. As “dororidades²” são tantas que não falamos sobre isso publicamente. Vamos sobrevivendo. Vamos acumulando migalhas de afetos aqui e acolá. Mas como disse Nina Simone, “você tem que aprender a levantar-se da mesa quando o amor não estiver mais sendo servido”.
Essa “escrevivência” representa um pouco desse ato de levantar da mesa. Levantar e gritar.
Somos um povo ferido, “feridos até o coração” como bem diz bell. Essas feridas históricas ficam memorizadas no nosso corpo. São traumas. São travas. São violências. Por isso, amar é sim um ato revolucionário para nosso povo, o povo negro. Combatemos também a opressão com amor, com desejo, com tesão, com gozo, com poemas, com música, com arte!
Mulher, negra e sapatão
Falo do meu local de fala. Mulher, negra e SAPATÃO. Sim, S A P A T Ã O! Sentir o peso dessas estruturas no meu corpo me impede, muitas vezes, de sentir amor, de sentir prazer, de gozar, de viver. A armadilha dos relacionamentos abusivos é recorrente em nossas vidas afetivas. Contudo, aprender a levantar da mesa é um exercício diário e dolorido. É uma prática libertadora, porém não é automática.
A intenção dessa “escrevivência” não é teorizar além da conta, mas visibilizar nossas vivências e registrar os momentos de afeto que podemos construir nossas vidas. É uma narrativa do que vivo, do que sinto. Defendo que opressão se combate com afeto. Meu prazer, sem dúvidas, é resistência. Meu gozo é protesto. Por isso mesmo, escrevo e descrevo.
Ser mulher, sapatão e negra tem suas questões. Muitas questões. Pra não pesar a escrita, vou me ater superficialmente a três delas. Primeiro, insegurança. Você não chega em ninguém assim, do nada. Eu pelo menos me sinto assim, embora não pareça. O medo da rejeição é assustador. Não é uma questão de ego. Não é medo de um “fora”! É um peso histórico mesmo, o peso da rejeição, da exclusão, da exploração.
Segundo, você nunca vai ter certeza se a pessoa “curte”. Sempre pairam as dúvidas. O receio de chegar em uma mulher e ela reagir de forma negativa existe. A gente sempre fala do “gaydar”, mas ele nem sempre funciona pra todes. Inclusive, o “gaydar” é um privilégio muitas vezes. A liberdade de paquerar é um privilégio nessa sociedade opressora.
A terceira questão que pesa antes de qualquer paquera é o julgamento da sociedade em relação ao relacionamento entre duas mulheres. Dentro do Movimento LGBT isso se produz e reproduz de maneira assustadora. “Sapatão basta ficar uma vez e casa”; “sapatão só sabe namorar”; “sapatão é tudo carente”, “Aff! Vocês conversam demais! Cadê o sexo?”, etc.
A questão é que existe uma estrutura. Ela pesa. O racismo, a lesbofobia, a bifobia, a transfobia e o capitalismo pesam nas nossas subjetividades. Massacram. Então, o modo como vivenciamos afeto é totalmente influenciado por isso. Nós, mulheres que amamos mulheres, não temos liberdade para vivenciar nossos afetos publicamente. Não há segurança nas ruas, nos bares, nas praças. Nossos espaços de convivência são poucos. As possibilidades de construir afetos são restritas. A paquera é restrita. Além disso, muitas vezes, quando a “sapatão fica uma vez e casa” é porque sair de casa é uma necessidade pra poder vivenciar uma relação sem a cobrança da família, por exemplo.
É como a companheira Evelyn Silva³ afirma: “temos tantos direitos negados, inclusive o de construir intimidade e laços profundos com nossas namoradas, suas famílias, seus amigos, em público e notoriamente. O direito de termos tempo para nos descobrir e nos conhecer”. Ser fudida de grana intensifica ainda mais todas essas questões. Não ter um transporte, não ter grana pra pagar um motel e poder transar em um lugar seguro, tudo isso influencia a vivência de nossos afetos.
Eu tenho meus privilégios. Mas, apesar deles, eu ainda vivencio muito dos meus afetos de forma contida. Meu sonho é andar pelas ruas de mãos dadas com uma mulher sem sentir um frio na barriga de tanto medo. Sem sentir os olhares caindo sobre meu corpo. É o sonho de muitas mulheres que se amam. Por isso, sim, eu prefiro ficar de casalzinho em casa, assistindo netflix e transando bem muito sem correr o risco de ser alvejada no meio da rua.
Apesar de tudo isso e muito mais, quero compartilhar com vocês um desses momentos em que os afetos conseguem ser vivenciados. Não sem medo. Os encontros acontecem. E é importante falar deles também. É importante pra gente ter esperança de que um dia todos esses afetos serão vividos livremente. Eu mereço e nós merecemos relatar esses momentos.
Choveu chuva em Teresina
Lembro de cada momento. Cada sensação, cada pensamento. Sinto teu cheiro em minhas mãos ainda. Fecho os olhos e respiro bem fundo teu cheiro em minha mão direita. Nos meus dedos que mergulharam em ti. Cheiro teu, cheiro de mulher, cheiro de força, cheiro de prazer.
Volto no tempo.
Domingo. Parque da Cidadania. Teresina. Piauí. Calor, muito calor. Mas naquele dia choveu. A terra ficou molhada. Eu fiquei molhada.
Cheguei despretensiosamente. Era um espaço sobre autoras negras. Campanha Esperançar(4). Muitas mulheres lindas e fortes. Muita vontade de construir luta. Muita curiosidade. Muito encantamento. Afinal, estamos nos lendo. Estamos nos vendo. Era uma energia incrível.
Pedi uma água de coco. Tomei. Sentei e fiquei olhando os livros. Bem comportadinha. Esperando o início de mais uma reunião do partido. Eu e minhas reuniões.
De repente, levanto a cabeça e assisto ao exato momento em que ela chega. Pensei: “EITA PORRA!”. Tu veio se aproximando e eu automaticamente me perguntando: “quem será?”. Olhei para os lados pra saber quem te conhecia. Afinal, não rola de chegar chegando logo de cara. Logo descobri, pra minha surpresa.
Aqui, eu falo com vocês e falo pra ela. Falo pra nós. Fiquei observando aquela mulher. Te observei. Rolou aproximação e descobri afinidades. Muitas afinidades. Na primeira troca de ideias, ela me deu uma aula de bell hooks logo de cara. Fiquei passada! Encantada. Excitada, lógico. Papo vai e papo vem. O que eu adoro, inclusive. Adoro uma boa conversa, aquela que te envolve e aguça ainda mais os teus sentidos. Sexo oral, literalmente.
Veio o primeiro beijo… Mãos na cintura. Aperta. Te sinto, tu me sente. Minhas mãos percorrendo tuas costas. Sinto tua respiração no meu pescoço. Tuas mãos me apertando com desejo. Nossas línguas conversando. Aqui não tem tempo verbal, o tempo é contínuo.
Sinto teu cheiro, tentando reconhecer tua essência. Minhas mãos passeiam por teu corpo. Nossas coxas se entrelaçam em um abraço só nosso. Te olho e vejo desejo. Fecho os olhos e enfio meus dedos nos teus “cabelos-coroa”. Olho nos teus olhos, ainda segurando teus cabelos, e exponho teu pescoço. Minha língua passeia pelas tuas orelhas adornadas.
Te mordo levemente. Tu geme. Eu estremeço. Beijo teu pescoço e desenho alguma coisa indizível com minha língua. Arquejamos. Escorrego minhas mãos pra tua cintura e dou uma leve pressão. Pego o gancho dessa investida e tiro tua blusa, lentamente.
Sinto o cheiro do teu colo e passeio com minhas mãos lentamente por todo teu tronco. Me demoro nas tuas costas até achar o gancho do teu sutiã. Te abraço, já sem roupa, só pra tu sentir o calor do meu corpo no teu.
“Esfregando a pele ouro marrom do teu corpo contra o meu” nos vi tigresas, como diria o poeta Caetano.
Sigo pra desabotoar tua calça e deixo ela deslizar rumo ao chão. Nesse momento, eu paro pra admirar todo teu corpo nu. Ele vibra. Nossas línguas conversam.
Agora minhas mãos brincam nas tuas coxas. Sinto cheiro de chuva. Cheiro de terra molhada. Te abraço por trás. Sinto teus seios em minhas mãos enquanto passo meus lábios nas tuas costas e no teu pescoço. Minhas mãos escorregam dos teus seios e caminham lentamente pra tirar tua calcinha. Sem pressa nenhuma, admiro teu corpo nu. Completamente nu. Penso: “nossa, que mulher!”.
Te convido pra cama. Pouso meu ouvido no teu colo e, como diz a poeta Tatiana Nascimento em “cuíer paradiso”(5), sinto “teu coração conversar com a pele do meu ouvido”. Te dou um beijo de leve e te ponho de bruços… Passeio com minhas mãos por todo teu corpo ativando todo ele. Encosto meu corpo no teu e sento eletrochoques.
Sussurro algo no teu ouvido e tu reage puxando meus cabelos. Minhas mãos estão entre tuas coxas… Te sentindo. Esfrego meu corpo no teu. Vai e vem. Vem e vai. Meu peito encostado nas tuas costas. Respirando juntas. Te viro e te encaro pulsando tesão e vontade. Olho nos teus olhos. Não precisa de pressa. Nossas línguas conversam.
Minha língua quer fazer festa no teu corpo. Teus seios florescem. Quero beijá-los. Chupá-los. Passo minha língua na auréola do teu seio direito. Tu estremece. Me demoro ali. Minha perna direita tá entre tuas coxas. Consegue sentir? Passo para o seio esquerdo. Beijo, mordo e chupo. Faço círculos com minha língua em volta deles. Teus seios são muito lindos, sabia?
Eu sei que tu me quer ali, eu sei que tu quer minha língua em ti, eu sinto nas minhas coxas… Eu sinto tu me pedindo. Me esfrego na tua coxa direita pra dizer que quero o mesmo. Mas calma… Ainda não… Preciso sentir teu gosto. Teu gosto. Teu cheiro. Teu ser mulher. Te beijo toda e desço percorrendo todo teu abdômen.
Minhas mãos estão agora entre tuas coxas, não querem sair dali… Mordo toda a extensão das tuas pernas… Chego na tua virilha… Vou lambendo e mordendo toda ela. Teu corpo vibra. Sinto o cheiro do teu sexo. E preciso beijá-lo. Quero te chupar, mulher! Quero te beber toda. Beijo inverso. Beijo molhado. Lábios com lábios. Tu puxa meus cabelos tentando controlar o prazer. Eu respondo te chupando mais. Aperto tuas coxas. Não tenho pressa alguma, quero aprender a te dar prazer, mais e mais. Quero aprender todos os caminhos. Te chupo. Tu geme. Eu suspiro. Tu estremece.
Quero te sentir em mim. Nos beijamos em cima e embaixo. Nos beijamos. Dois beijos simultaneamente molhados. Cheiro de terra molhada. Explodimos feito trovões. Teu suor misturado ao meu forma uma nova fragrância. Ficamos abraçadas, buscando fôlego. Nossas línguas ainda conversam, brincam com mais calma. Eu rio e tu ri. “Quer água?”, ela pergunta.
Assim, iniciamos a construção do nosso “paraíso cuiér”.
Paro por aqui. Ainda estou “escrevivendo” esses afetos. Mas a intenção é compartilhar um pouco da nossa potência juntas. Nossa potência enquanto mulheres. Parto de uma vivência minha, mas sei que dialogo com muitas outras.
Juntas somos mais fortes!
Eu sinto a solidão das minhas irmãs no meu corpo. Meus privilégios me permitem viver algumas experiências que não chegam a todas, infelizmente. O sexo entre duas mulheres ainda tem seus mistérios. Mistérios porque silenciados. Mistérios acorrentados.
A sociedade nos endurece e nos faz perder a ternura, então sempre que duas mulheres negras se amam o chão treme. São as estruturas se movendo, não tenham dúvidas. Nosso afeto é potência, é arma contra o desamor, contra a opressão.
Então, divido meu afeto com todas vocês pedindo para não os silenciarmos mais. Precisamos expressá-los. Essa é só mais uma tentativa. Meu desejo é que todas possamos desejar juntas. Que possamos ser trovão juntas, “trovão que nada desfaz”.
Por isso escrevo.
Escrevo para nos contar do nosso jeito. O opressor não pode dominar nossas vivências e narrá-las pro seu deleite. Experimente colocar no google “lésbicas negras”. Somos objetos!
Escrevo porque não tenho escolha, como disse Glória Anzaldúa. Escrevo “porque o mundo que crio na escrita compensa o que o mundo real não me dá”(6). Então, sigamos movimentando as estruturas com nossos afetos.
1. Disponível em: https://www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/
2. Segundo Vilma Piedade, “dororidade” é a cumplicidade entre mulheres negras, pois existe dor que só as mulheres negras reconhecem , por isso a sororidade não alcança toda a experiência vivida pelas mulheres negras em seu existir histórico.
3. Disponível em: https://www.huffpostbrasil.com/2017/10/24/casamento%20lesbofobia_a_23254528/.
4.Sobre: ver insta @esperanca.garcia.
5. Disponível em: https://medium.com/@arianaoalves/4-poemas-de-tatiana-nascimento-3f0c3971b432.
6. ANZALDÚA, Glória. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas. v. 8, n. 1, 2000, p. 229-236.