Era uma vez uma menina que tinha cinco tranças lindas e se chamava Ynari. Ela gostava muito de passear perto da sua aldeia, ver o campo, ouvir os passarinhos e sentar-se junto à margem do rio.
Certa tarde, já o Sol se punha, Ynari ouviu um barulho. Não eram os peixes a saltar na água, não era o cágado que às vezes lhe fazia companhia, nem era um passarinho verde. Do capim alto saiu um homem muito pequenino com um sorriso muito grande. E embora ele não fosse do tamanho dos homens da aldeia de Ynari, ela não se assustou.
O homem muito pequenino andava devagarinho e devagarinho se aproximou.
(…) Posso fazer uma pergunta, homem muito pequenino?
– Podes fazer muitas perguntas.
– De onde vens?
– Venho da minha aldeia, que fica mais para cima, junto à nascente do rio.
– E lá, na tua aldeia, são todos pequeninos?
– Sim, somos todos mais pequenos que vocês, quer dizer, depende daquilo que entendemos por «pequeno». Não achas?
– Nunca tinha pensado nisso. Sempre pensei que uma coisa menor fosse uma coisa pequena…
– Pode não ser assim… Conheces a palavra «coração»?
– Conheço! – sorriu Ynari. – E não é só uma palavra, é isto que bate dentro de nós – e mostrou no seu peito onde o coração batia.
– Claro, e… O coração é pequeno para ti?
– É… e não é!
(…) Cabe tanta coisa lá dentro, o amor, os nossos amigos, a nossa família…
Ynari, a menina das cinco tranças, curiosamente fala do significado das palavras e do que elas podem ser pra si própria e para o Homem Pequenino. O conto é um lindo exemplo de como a comunicação nos transforma. Palavras podem ser ditas, escritas, gesticuladas, dançadas ou desenhadas. Nós somos feitos de palavras, temos um nome, somos um apelido carinhoso, somos sons e melodias para nós mesmos e para os outros.
E contamos histórias e estórias, cada um no seu jeito especial, exprimimos sentimentos, abraços, amores através do verbo – falado, escrito ou dançado ou pintado. Somos e significamos diferentes coisas para diferentes pessoas, mas no fim todos temos um significado, temos uma palavra. Por isso, somos – cada uma e todas – Griôs.
A FALA
A oralidade é um dos mais preciosos bens para nosso povo, se trata de transmitir pelo instrumento que é a voz nossas ideias, o que acreditamos, as lendas, vivências e experiências.
Suas guardiãs se fazem presente seja fisicamente, seja através das suas palavras: quantas mães são carinhosamente lembradas nos seus ditos populares? As crenças (ou lendas, como queiram) são passadas de geração em geração e qual mulher nunca guardou os ensinamentos sobre como amenizar dores, tomar chás ou como proceder ao estar grávida.
São Stellas, Marias, Creusas, Leilas, Severinas, Carmens, Marianas, Carolinas e Laudelinas que ouvem e falam, guardam e repassam os conhecimentos. São segredos guardados nos gestos, nos ditados, nos cantos e estórias que fazem delas pessoas preciosas e importantes para nosso crescimento como pessosas, como grupo, como humanidade. Elas que conhecem os segredos do sagrado, as que sabem da cozinha, as que cuidam e se deixam cuidar, as que trabalham em casa e fora dela, todas essas mulheres negras preservam os saberes e guardam a história e as ciências das comunidades, das regiões e do país.
Usamos a fala também para dizer do que não gostamos, o que não nos agrada e o que não faz parte de nós. Conhecer e preservar o poder da palavra também é parte da tarefa de nossas Griôs assim como é nossa a responsabilidade de ter a prática do cuidado para com o outro em tudo que dizemos. Falar o que nos é devido com a esperança de que escolhemos as melhores palavras e as pronunciamos do melhor jeito. Isso não significa que não utilizaremos dureza, raiva ou a ênfase no proferir, muito pelo contrário, a expressão quando faz uso desses sentimentos como ferramenta deve ter o dobro do cuidado e se bem feita, o interlocutor entenderá porque assim o foi feito.
A ESCRITA
Através da oralidade preservamos nossa cultura, esse é o tema do Festival Latinidades de 2014. Com ela chegamos até aqui conhecendo nossa história e a nós mesmos, sempre fizemos isso muitíssimo bem, mas sempre podemos mais. Escrever é o mais, escrever é o além.
Os povos Sumérios e os Egípcios foram os primeiros a gravar num suporte símbolos em sequências verticais com um estilete feito de cana que gravava traços verticais, horizontais e oblíquos; ou ainda imagens literais que através de seu uso ganharam complexidade. Aprimoraram a técnica, criando novos instrumentos e maneiras de cravar os signos na tabuleta. Logo depois outras civilizações adotaram essa técnica (que até então era hieróglifo, como assim eram chamados cada um dos sinais da escrita antiga ) e com o passar do tempo os pictogramas e ideogramas se tornaram o alfabeto que conhecemos.
Aliás, a palavra deriva de dois termos gregos: ἱερός (hierós) “sagrado”, e γλύφειν (glýphein) “escrita”, e somente os sacerdotes, membros da realeza e escribas conheciam a arte de ler e escrever os “sinais sagrados”. Com toda essa simbologia, a escrita já significava muito àquele tempo e sua magia sempre foi poder gravar os signos, prender os sentidos, registrar pra tornar a palavra ainda mais importante.
Nossas griôs modernas lapidam as palavras como ninguém, gravam em diferentes suportes – blogs, livros, redes sociais, cadernos, teses e zines – e escrevem suas estórias, seus pontos de vistas, suas alegrias e dores. E acima de tudo, com todo respeito aquelas que vieram antes de nós, sem as quais não estaríamos aqui. E se deixam ler, interpretar e ser absorvidas por outras que vão partilhar, entender e se emocionar com as suas – e em seguida nossas – palavras.
Escrever se torna ferramenta, arma e bálsamo. Transcrever sentimentos em palavras que depois tenham livre acesso é exercício de libertação, de carinho e de preocupação também para com o outro, e quem tem consigo a missão é também um pouco Griô. E aqui podemos citar inúmeras dessas mulheres: tantas mulheres negras griôs da palavra, dos signos, das mensagens e poesias que nos deixam identificar e nos sentir parte de algo bem maior.
O SILÊNCIO DIANTE DA ORALIDADE
Descobri com muita dor, mas também com muito carinho e respeito que calar também comunica. Calar não só a palavra dita, mas a escrita, a dançada, a mostrada. Calar quando alguém fala ou simplesmente calar diante do silêncio do outro é comunicar sim. Silenciar pra apender, pra ouvir, sentir, aguçar outras habilidades. O silêncio transforma, mas não o silêncio compulsório, obrigatório, opressor e histórico; o silêncio como escolha, como amigo da calma, da representação e da ação.
Audre Lorde já falou sobre transformar o silêncio em linguagem e ação, e perguntou “Quais são as palavras que você ainda não tem? O que você precisa dizer?” São inquirições que me faço todos os dias e quando me dou conta que não as tenho ainda, silencio o silêncio do aprendizado, da reflexão. O ouvir é bem presente no silêncio e cada coisa que se escuta – desde os sons na natureza, músicas até as histórias dos mais velhos – alimenta um repertório singular, compondo um pergaminho de experiências a serem transmitidas muito em breve. Muitas vezes o silêncio é a saída e a resposta no tempo e precisa ser para que depois venha a explosão, o dizer.
E quem usa o silêncio assim, quem o aplica do seu jeito e o respeita tem em si um pouco de Griô – guardando primeiro e depois espalhando a importância desse mesmo silêncio. Levando a tantas outras mulheres e homens os resultados da sua pausa, que sem dúvida pode gerar gestos e registros incríveis.
Sinais é uma música que fala o que a gente quer dizer. A melodia guarda um sentimento bom, as vozes são tão doces e enebriantes. A música, perfeita em ser símbolo, transmite no seu conjunto uma magia que me é inexplicável. Sinais é a tradução do que às vezes queremos dizer, mas não temos palavras – eu quis dizer e não achei as melhores, eu acho. E ela cabe bem aqui porque me pareceu o resumo, o conceito do que seria uma parte do imenso universo griot. Aprendi que essa palavrinha tão pequenina é usada por diversos povos: os grupos africanos Baba, Dioma, Rafuma, Dieli, Mabadi e os Funa; os nativos das tribos Pankararu de Pernambuco e os Tupinanbá da Bahia, os os Macuxi em Roraima e os Morubixabas.
Acredito que mais do que um termo, a palavra representa um jeito de ser, uma característica fundamental na preservação de nossas histórias e nós, mulheres negras, temos muito de Griôs. Somos médicas, domésticas, jornalistas, professoras, enfermeiras, mestras, donas de casa, designers, escritoras, estudantes, publicitárias e arquitetas que falam, escrevem, cozinham, silenciam e guardam os significados e segredos do nosso povo. Nosso é o universo dos saberes e fazeres, práticos e teóricos. Nossa é a palavra dita, dançada, registrada.
REFERÊNCIAS
Afrolatinas Flickr – https://www.flickr.com/photos/73227216@N08/
Afrolatinas – Festival – afrolatinas.com.br
Ynari – http://www.kazukuta.com/ondjaki/ynari.html
Imagem de destaque – Latinidades, flckr