“Você pode ser o que você quiser”.
Quantas crianças e jovens podem ouvir e acreditar nessa frase tão potente? Considerando as desigualdades em nosso país, ouso dizer que: 1) muito poucas; 2) certamente não fui uma delas. Isso porque o racismo estrutural que constitui as instituições e todas as bases de nossa sociedade, ainda é responsável por sustentar desigualdades que têm impedido que pessoas negras de fato acreditem ou vivenciem a experiência de serem o que quiserem. Levando em conta a interseccionalidade, a questão racial no Brasil também é somada aos viéses de gênero e às disparidades socioeconômicas que também limitam de diferentes formas nossas perspectivas ao nascermos.
Como mulher negra de pele clara – e reconhecendo o colorismo que em diversas situações me dá mais passabilidade do que às minhas irmãs retintas -, estar em ambientes onde a maioria das pessoas que me cercam são mulheres negras infelizmente não faz parte da minha rotina há muito tempo. Hoje coordeno o projeto de divulgação científica “Evolução para Todes” (EPT) e contextualizar os impactos da ausência de representatividade e de pares no caminho que trilho é importante para apresentar o projeto.
Sou bióloga formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, graças a uma bolsa Prouni. Pra quem sempre estudou em escolas públicas dá pra imaginar a distância entre a minha realidade e a da maior parte dos alunos (brancos) com os quais convivi a partir daí. Segui para o mestrado e agora desenvolvo meu doutorado na Universidade de São Paulo (USP), no Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva (LAAAE) e, apesar de já ter se passado mais de uma década desde meu primeiro ano de graduação, o padrão continua o mesmo (ainda que as políticas públicas dos últimos anos já reflitam um aumento da diversidade no acesso ao ensino superior).
Professoras e professores maravilhosos cruzaram meu caminho e, apesar de ser grata, apenas recentemente identifico o quanto nunca ter convivido com mulheres cientistas, professoras e orientadoras negras contribuiu para as sensações recorrentes de não pertencimento e para as angústias comuns à síndrome de impostora.
Projetos científicos surgem a partir de problemas e perguntas e esse projeto de divulgação científica, pra mim, surgiu desse tipo de incômodo. O que posso fazer para que meninas como eu possam acreditar mais em si mesmas e que a universidade e o caminho da ciência também podem ser pra elas? Como contribuir para que minhas áreas de estudo sejam mais diversas?
Durante séculos, diferentes disciplinas acadêmicas ocidentais, majoritariamente formada por homens brancos, contribuíram com as ideias sobre hierarquia racial que levaram a diferentes tipos de violências e violações de direitos de pessoas não-brancas. Vale lembrar que além da escravização e extermínio de corpos negros e indígenas nas Américas, o racismo científico levou à atrocidades como experimentos os médicos em corpos negros, a existência dos zoológicos humanos (o último foi fechado na Bélgica apenas em 1958) e a influência do movimento Eugênico em políticas que se basearam na tese do embranquecimento como exigência pro desenvolvimento do Brasil.
Apesar do consenso científico de que as raças humanas não fazem sentido do ponto de vista biológico e são apenas construções sociais, é preciso atuar de forma mais efetiva para a construção de uma sociedade mais igualitária como um todo. Já existem estudos que indicam a importância de equipes diversas para uma produção científica que de fato seja mais criativa e completa, capaz de atentar para problemas complexas e propor soluções mais amplas justamente por poder contar com maior diversidade de olhares. Ou seja, pensar divulgação científica associada à inclusão racial e de gênero, é fundamental para tornar as ciências acadêmicas também mais interessantes para pessoas negras e mulheres, recortes ainda sub representados nos centros de pesquisa.
Não posso deixar de mencionar que essas angústias foram acolhidas por duas colegas do mesmo laboratório, Lisiane Muller e Eliane Chim, cientistas que apesar de brancas também buscavam formas de tornar nossas pesquisas mais inclusivas, em especial considerando suas experiências quanto aos vieses de gênero e de classe. Interseccionalidade é tudo e co-fundamos o “Evolução para Todes” com o objetivo de divulgar temas em arqueologia, antropologia e evolução humana atrelados às pautas de inclusão racial e de gênero.
Com apoio do Instituto Serrapilheira tivemos verba suficiente para contratar uma equipe que nos ajudou na produção e distribuição dos nossos conteúdos e contamos com profissionais de comunicação, artes, produção e educação, majoritariamente negros. Novamente, a importância da diversidade: a multidisciplinaridade também contribuiu para tornar nossos conteúdos mais atrativos. As desigualdades de gênero e raça que marcaram nossa caminhada na universidade estão presentes em todas as áreas de atuação de nossa sociedade e a busca ativa por profissionais não-brancos para o desenvolvimento de nosso projeto foi fundamental para o sucesso do mesmo.
Nesse artigo, aproveito o espaço do “Blogueiras Negras” para divulgar as mulheres negras por trás do “Evolução para Todes”, além de registrar o convite para que acompanhem nosso canal no YouTube (Evolução para Todes), onde nossas animações e minivídeos estão disponíveis, e as redes sociais do Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva (LAAAE-USP).
Mariana Inglez, coordenadora do projeto, bióloga e doutoranda no LAAAE, no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, pelo Programa de Pós-graduação em Genética e Biologia Evolutiva. Atuou desde a graduação nas áreas de bioarqueologia e bioantropologia, realizando as etapas de escavação, cura e análise de esqueletos humanos do passado e em contextos forenses. Atualmente, estuda o processo de transição nutricional em comunidades ribeirinhas da Amazônia. “Me sinto realizada por ter co-fundado esse projeto com outras mulheres cientistas que admiro e de ter sido possível contratar uma equipe majoritariamente negra para participar dessa construção, que inclusive teve muitas mãos femininas. É potente perceber que compartilhar ciência com afeto, pensando em diversidade e inclusão, toca pessoas e amplia as pontes de diálogo para além dos muros da universidade. Cada professora que nos escreveu dizendo que precisava desse tipo de conteúdo, ou criança/jovem negra que se viu representada pela “Mari” de nossa animação, me estimula a continuar a caminhada”.
Como ponto de partida do projeto, contratamos consultoras em afro-alfabetização para guiar as reflexões iniciais sobre os caminhos a seguir para que de fato pudéssemos fazer uma divulgação científica inclusiva do ponto de vista racial e de gênero. Sendo o LAAAE-USP um laboratório de pesquisa majoritariamente branco, as educadoras apresentaram pautas da diáspora e do contexto da negritude e da branquitude no Brasil, para os pesquisadores e alunos da equipe.
Priscila Fonseca, educadora, produtora cultural e profissional de Relações Públicas (UEL), que também tem se dedicado a pesquisas sobre culturas, raça e gênero: “Foi uma experiência incrível, trazer o tema da afroalfabetização, que é tão caro para nós, para um grupo de cientistas. Ter a Mariana na liderança do projeto é uma inspiração e eu torço para que cada vez mais a academia seja ocupada por pessoas diversas em especial negros, indígenas, Lgbtqi+, PCDs… só assim teremos soluções efetivas para uma sociedade equânime”.
Juliana dos Santos, artista visual, mestre em arte-educação e doutoranda em Artes pelo Instituto de Artes da UNESP (@unesp_oficial), vem realizando exposições e residências artísticas no Brasil e no exterior em especial com temáticas negras: “Foi uma partilha muito importante pensarmos os propósitos e conteúdos para a auxiliar na formação desses cientistas. Um avanço importante nos dias de hoje: pensar numa ciência mais humanizada e comprometida com perspectivas mais éticas no que tange a valorização de nossas matrizes africanas e sobre a representatividade negra”.
Teresa Abreu, figurinista, produtora de artes e pesquisadora em comportamento e consumo: “Levar para um grupo de cientistas o conteúdo de afro-alfabetização, usar a imagem, a estética para partilhar conhecimento científico, com o cuidado de representar de maneira consciente as personas diversas, colabora na construção de um novo imaginário”.
Via Mundi Produtora – produtora contratada para o EPT, especializada em conteúdo que tem como foco o desenvolvimento de narrativas negras e conta com uma rede de profissionais negros em várias frentes de atuação para a realização de projetos de comunicação, co-fundada por Raul Perez e Fernanda Lomba -, contratamos a equipe que participou das diferentes frentes do projeto.
Nossa assessora de comunicação, Natália Henrique, é formada em educomunicação pela ECA/USP e em marketing pela Universidade Anhembi Morumbi. “Eu sempre fui muito boa em contar histórias, aliás, é o que se espera de uma comunicadora como eu, mas atuar no planejamento de marketing do projeto Evolução para Todes me trouxe um novo olhar de como costurar e disseminar narrativas de forma horizontal. Quando assisti à animação Evolução para Todes: De onde viemos?, pela primeira vez, entendi que a produção científica precisava sair do âmbito acadêmico urgente, um vídeo de apenas dois minutos me atravessou trazendo aquele gostinho de pertencimento e de honra aos que vieram antes de mim. Ao longo do projeto, ganhei alguns questionamentos enquanto acadêmica: para além dos muros universitários, como a sociedade, que financia através de impostos nossos estudos, se beneficia com as nossas pesquisas?”
Para modernização do site do laboratório onde divulgamos não apenas as atividades do “Evolução Para Todes”, mas todas as pesquisas, eventos, disciplinas e oportunidades do Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva, contamos com a web designer Karina Cárdenas: “Esse projeto mostra como a diversidade constrói ações efetivas e que trazem mudanças profundas no modo como compreendemos a construção do conhecimento”.
A Identidade Visual do projeto e boa parte das artes de nossos posts nas redes sociais são de Laís Oliveira, designer e artista visual. “Pra mim é sempre importante fazer parte de projetos que me reconheço. Participar da construção do Evolução para Todes foi maravilhoso, potente, fortalecedor, fico orgulhosa em dizer que esse projeto tem um pouco de mim. Vida longa para esse projeto maravilhoso.”
Por fim, não posso deixar de mencionar que as animações foram produzidas pela equipe da Noiz Anima, coletivo de animação independente da Zona Leste de São Paulo, e contou com produção executiva de Joyce Moreira, com a direção de Ivanildo Soares e supervisão de Luiz F. da Silva.
Confira nosso canal no youtube!
Nossas redes:
Site: sites.usp.br/laaae
Instagram: @laaae_usp
Facebook: Página do LAAAE-USP
YouTube: Canal do Evolução para Todes
Twitter: @laaae_usp