Texto publicado originalmente no medium Flores e Pedras
Eu escrevi esse texto em 2018 para apresentar em uma disciplina da graduação. Na época, a síndrome do impostor me impediu de levar as pesquisas adiante e de apresentá-lo. Só agora ele veio pra cá, com fins de registro e também para lembrar um pouco sobre quando e como começou esse março de 2020 onde nós ainda estamos.
O que esse golpe significou para os Africanos em diáspora diante do poder institucional da branquitude? Abordarei brevemente as manifestações de 2013, que viriam a culminar no golpe de 2016. Será abordada ideia de democracia americanista- que reduz o exercício da cidadania em seu modelo democrático ao exercício do voto compulsório — proposto por Angela Davis, em suas reflexões a respeito daquilo que chamou democracia da abolição.
Diáspora Africana
Entender África como um lugar de origem e de referência é buscar entender o negro no Brasil em uma perspectiva panafricanista. O negro não é negro, a palavra foi usada pelo colonizador na tentativa de apagamento de identidades étnicas diversas e sequestradas ao longo de 300 anos. Ser africano em diáspora é reconhecer que a maioria dos bens utilizados hoje em dia, no mundo todo — como arquitetura, matemática, agricultura, código binário — tem origem há milênios, em diferentes países que formam o continente africano. E se por vezes o africano no Brasil se intitula negro, não é por outro fim se não político.
Talvez um dos conceitos mais utilizados pelos africanos em diáspora engajados no pan-africanismo seja a ideia de sankofa, um adincra que preconiza olhar ao passado, significar o presente, para construir o futuro. Para a modernidade eurocêntrica, este papel é atribuído a pessoa historiadora, enquanto para o Fon, atribui-se ao tamboreiro, que é o Sankofa.
Ponta de lança
Independente da adoção, do termo impeachment ou Golpe, há de constar que para os africanos em diáspora, desde Palmares até 2013, o exercício da cidadania, jamais lhes foi conferido. O poder do aparelho burocrático nacional jamais representou os interesses destes sujeitos. Ao contrário, este poder tem se encarregado de fazê-los morrer, pelo tráfico, pelo sistema prisional, desemprego, ou fome, sempre sem ensino institucional. Nesse sentido, para os diaspóricos, o primeiro golpe foi à proclamação da república de 1889. Luís Gama, José do Patrocínio, André Rebouças, engajavam-se como abolicionistas entre os republicanos (e rechaçados eram nesse meio). Reivindicavam a garantia de direitos elementares à época, como terra e educação por parte do Estado aos escravizados libertos. Entendendo que o projeto republicano, claramente excluía a segurança e bem estar do povo preto, enquanto priorizavam, na verdade, um modelo econômico já adotado na metrópole inglesa: Mão de obra branca livre, como parte do sistema fabril pretendido pelo Brasil, que ali ansiava desenhar-se como República Moderna. O Golpe da República não passou de medo que o Brasil virasse o Haiti. Um medo que começa nos ataques a Palmares e que até hoje tenta derrubar qualquer governo que ensaie garantir minimamente aqueles direitos que lá atrás os abolicionistas republicanos negros pautavam.
Palmares vinha se tornando uma república, antes daquilo que chamamos hoje Brasil. Nas palavras de Beatriz Nascimento “O Brasil, naquele momento era uma colônia abandonada. Portugal estava colonizado pela Espanha, com Palmares, o Brasil, naquele momento estava começando a ser pai de si mesmo”.
Em 2013 o cenário que se desenhava, naquelas manifestações e que mais tarde culminariam no golpe 2016, para a diáspora, não era novo. Tratava-se de mais um conflito que polarizava a branquitude e seus interesses políticos. Para os black blocks das jornadas de junho, assim como para o movimento Vem pra Rua, independente do polo, naquele momento a ideia era fazer valer as vontades brancas. Se favorável às esquerdas o resultado seria, talvez, o alcance de políticas públicas paliativas, que inferem as falsas sensações de inclusão do povo negro como agente político e cidadão. Se favoráveis à direita da classe média, vestidos de verde e amarelo e com panelas nas mãos, o resultado seria apenas a manutenção dos privilégios que estes temiam perder.
Naquele contexto, desenhava-se a imagem do antipestismo, e o povo em diáspora, se via fadado a ver com olhos de desconfiança ambos os lados. Descrentes da eficiência do poder público, nunca foram brasileiros, somente votantes, eleitores.
A democracia da Abolição
Davis explana sua tese de que o sistema prisional é uma perpetuação do sistema escravagista e o cerne desta lógica está na democracia norte-americana. Na verdade a democracia estadunidense se tornou um modelo de democracia no mundo ocidental moderno, mas está longe de ser um modelo de igualdade. O estado norte-americano acabou por reduzir a participação democrática ao exercício do voto, enquanto isso, mantém prisioneiros de guerra sendo torturados fora do território norte americano por entender que estes não são parte da democracia, são terroristas. Por sua vez o sistema prisional também vai excluir indivíduos, em geral negros ou latinos, da prática democrática ao colocá-los em um sistema que não garante seus direitos humanos e que funciona apenas como uma espécie de buraco. Todos que deveriam estar recebendo educação, moradia e emprego, mas que não possuem esses elementos que o Estado democrático deveria garantir, são jogados lá.
É também o caso das prisões que não estão em solo americano , como as de Abu Ghraib e de Guantânamo, onde a tortura parece ser autorizada. No texto essa discussão sobre autorização da tortura aparece na medida em que se discute a lei que proíbe a tortura e as fotos que foram divulgadas de soldados americanos torturando nessas prisões.
Ao longo do livro muitos aspectos interessantes foram abordados mas o foco deste texto será as prisões na leitura de Davis.
Para ela as prisões estão obsoletas, elas não reformam um indivíduo que foi preso, essas estrutura não serve pra isso. As prisões servem para controlar corpos, é uma instituição eugenista e um projeto do pós abolição que consiste em manter pessoas negras cativas e fora de circulação, e sempre que possível, matá-las. É a necropolítica pura e simples.
Qualquer semelhanças com a realidade de africanos em diáspora no Brasil não é mera coincidência. E talvez por esse motivo a diáspora estaria perplexa diante das guerras da branquitude , mais uma vez. Guerras que levaram Jair ao poder.
Referências
Beembe, A. (2014). Crítica à razão negra. São Paulo: Antigona.
DAVIS, A. (2009). A democracia da abolicação: Para além do império das prisões e da tortura . Difel .
GERBER, R. (Diretor). (1989). Óri [Filme Cinematográfico].
SAPICNENCIA, R. (Compositor). (2015). Ponta de Lança. [R. Sapiencia, Artista] São Paulo, São Paulo, Brasil.