A partir deste momento até o ponto final, todas essas modelos da autodisciplina e controle serão consideradas apenas imagens meramente ilustrativas, como hambúrgueres na TV (já reparou que o real é aquela alface murcha bem diferente daquela salada com orvalhos da propaganda?)
Diariamente, mulheres são educadas para ((desesperadamente)) desejarem um corpo universalmente agradável. O tal juízo estético define que o belo, estabelecido sem conflitos, é o que mais se aproxima de um corpo jovem, ágil e produtivo.
Neste contexto, avaliando o mundo como se fosse uma “régua de definições” – com lado positivo e negativo – o ideal, valorizado, o belo estariam opostos ao rejeitado, estigmatizado e feio. Sendo assim, é fácil dizer de que lado são, comumente, alocadas as mulheres NEGRAS, as mulheres GORDAS, as mulheres VELHAS, entre tantas outras.
Como contraponto a essas definições, a artista Francis Divina, responsável pelo projeto Representativid’arte, criado com o objetivo de valorizar as diferentes formas possíveis de ser mulher, destaca que o primeiro passo que a fez aceitar seu corpo e a questionar os padrões foi deixar de encarar a palavra GORDA como xingamento.
“Ela [a palavra gorda] é um adjetivo como grande, pequeno, baixo, alto e magro. Eu sei o quanto é difícil tirar a bagagem ruim que vem com esta palavra. Afinal, crescemos a ouvindo como um xingamento ou forma de desprezo. A mulher gorda é basicamente animalizada, reduzida a menos que humana. A coisa mais importante é se empoderar, conversar com outras mulheres GORDAS, entender que a sua existência não é menor só pela sua forma física”, ressalta.
Quebrando mitos: GORDURA X SAÚDE
Historicamente, a fusão entre beleza e um corpo magro está relacionada ao domínio, a disputas de poder que foram travadas nas primeiras décadas do século XIX. Retomando as aulas de história, o excesso de peso foi relacionado ao ultrapassado, que por sua vez era atribuído aos nobres. Ideário que apenas piora no início do século XX, quando pesquisas científicas decretam obesidade como oposto a saúde.
Para Francis está é mais uma das hipocrisias da sociedade atual. “As pessoas constantemente se dizem preocupadas com a saúde de pessoas gordas e/ou obesas, mas ignoram mulheres magras que se alimentam só de fastfood, ou de homens bombados que se alimentam só de whey protein, frango e batata doce.”
A blogueira, Cíntia Ferreira, do “Gorda não é uma palavra ruim”, comenta que o discurso da saúde esconde a opressão sobre as escolhas das mulheres. Debatendo a gordofobia a partir da perspectiva feminista há 3 anos, Cíntia afirma que já ouviu muitos relatos de garotas que tentaram inúmeras dietas e passaram a ficar doentes por conta desse anseio pela magreza.
“Não é nenhuma novidade, são muitas as histórias de distúrbios alimentares e de até mesmo da existência de viciados em academia motivados pelo culto ao corpo magro. Isso é muito sério. Eu mesma quando fui ao endocrinologista, o médico nem olhou na minha cara, viu meu tamanho, julgou que precisava de Sibutramina e Fluoxetina. A combinação de redutor de apetite com antidepressivo era a chave para ser aceita socialmente. Com a proibição da Sibutramina, por evidentemente fazer muito mal, provocar infarto, entre outros, não consegui mais comprar, engordei muito mais e, obviamente, nada se resolveu”, conta.
A graffiteira Soberana Ziza relata que após diagnóstico de pressão alta, a primeira medida do médico foi receitar urgentemente a cirurgia bariátrica. Algo que ela recusou por não achar necessário. “Não tenho problemas com o meu corpo, estou repensando minha alimentação sim, para estar bem comigo mesma. A gente não pode viver para o mundo, temos que viver para a gente”.
A também blogueira do Gorda e Sapatão, Jéssica Ipólito, que em setembro promoveu o Desafio Arte Gorda, pensado para fortalecer a imagem social de garotas fora dos padrões, acredita que conhecer e entender os mecanismos do preconceito às gordas – que muitas vezes vem travestido do discurso do saudável – auxilia a superá-lo no cotidiano.
“Não existe uma receita pronta. Cada mulher gorda vai estabelecer uma forma de olhar seu corpo muito particular e, a partir daí, fomentar a autoestima. Mas acredito que ter um olhar mais crítico perante a nossa sociedade, desdobrar suas nuances e entendê-las, acaba sendo importante para compreender os porquês desse ódio ao corpo gordo. Entender as ferramentas que fazem essa máquina perversa funcionar pode ser uma porta de entrada para olhar o próprio corpo sem a lente do erro e então, ter outro tipo de relação consigo mesma”, conclui.
Representação e as disputas sociais contra a gordofobia
Como bem define Jarid Arraes, em seu artigo Gordofobia como questão política e feminina, escrito para a Revista Fórum, o debate sobre os padrões de beleza deve transcender ao ‘mantra “ame suas curvas”’. Há um enfrentamento social que passa, segundo Cíntia Ferreira, pela ocupação dos espaços, “seja com o nosso corpo gordo e suas roupas, seja por meio do debate, seja pela busca de referências gordas”. Para Cíntia, o debate tem a ver com o direito das mulheres gordas ocuparem o mundo, de se reconhecerem.
Soberana Ziza narra que, graças a sua trajetória com o hip hop e o graffiti, ela aprendeu a não pedir licença para nada e nem para nenhum debate. “O graffiti nos atravessa, ele está lá, ele provoca. Foi por conta dessa experiência, pelo fato de gostar muito de desenhos que decidi agir como faço graffitis. Fui fazer faculdade de moda. Sim, uma garota gorda na faculdade de moda. E, apesar das dificuldades, foi lá que me aceitei. Agora se as roupas não me servem, se não são do meu tamanho, eu mesma posso fazer. Sabe, uma das minhas séries – chamada Mulheres Irreais – retrata aquilo que não existe de fato, mulheres magras, esquálidas, como eles definem ser o belo. Isso é inexistente. Eu estou aqui, estou na lotação, passando na catraca, na universidade. O mundo não está preparado para nós, mas a gente não vai pedir licença, a gente vai chegar. Quando vamos fazer um graffiti, simplesmente fazemos. É isso, entende? Temos que tomar de assalto o nosso lugar”
+ algumas poucas palavras…
Para escrever esse texto fui atrás de garotas como eu, fui atrás de representações semelhantes a minha trajetória que contribuem com o processo de construção da minha identidade.
Com a Jéssica Ipólito aprendi que nem sempre é fácil tomar consciência política do que se é dentro de uma sociedade como a nossa, é por vezes doloroso e interminável. Já com a Cíntia Ferreira aconteceu o tal do reconhecimento, sim ela mostra o braço gordo, ela usa vestido de alcinha e tem um namorado que a aceita do que jeito ela é e falar sobre tudo isso em seu blog não é um problema. Por meio dos desenhos e cuidado da Francis Divina entendi quanto a arte pode ser delicada ao nos retratar e existem infindáveis possibilidades de beleza. E Soberana Ziza mostrou que sua história é o real e o errado não é o meu corpo e sim os padrões de beleza.
Imagem destacada: Sobrezana Ziza – Marcos Lauber: City of Hip Hop – Brasil Hip Hop Exhibition 01.11.11. Berlin.