Lugar de negro é na cozinha: cotas na universidade pública

Por Mara Gomes para as Blogueiras Negras

“O não-racista não é aquele que ‘não tem nada contra negros’. O racista é aquele que não faz nada pra substituir, pra combater o processo de exclusão existente na sociedade. Porque ele está se beneficiando dos privilégios de uma sociedade racista, está se silenciando e se acomodando nesses privilégios, portanto está negando a mim e aos meus filhos a possibilidade de vivermos em uma sociedade justa e igualitária. Esse é o racista.”
José Carlos Gomes dos Anjos – Dr. em Antropologia da UFRGS

As questões que estão sempre sendo apresentadas quando a discussão é sobre cotas raciais frequentemente são: a meritocracia, a suposta vitimização do negro e, não se escapando também, a questão sobre o nível de qualidade da universidade, se ele mudaria, ou não, devido às cotas. Então vamos falar um pouquinho sobre essas questões e enegrecê-las, tanto melhor quanto esclarecê-las.

Meritocracia é uma palavra que vem do latim mereo que significa merecer, logo é uma forma de política baseada no mérito. No dicionário se diz assim: “as posições hierárquicas são conquistadas, em tese, com base no merecimento e há uma predominância de valores associados à educação e à competência.” Mas para a meritocracia ser válida em uma sociedade essa precisa ser totalmente democrática em seus direitos e deveres com o cidadão, ou seja, devem ser também totais as oportunidades entre todos os indivíduos. Todavia isso não é o que acontece no Brasil e está bem longe de acontecer um dia. Um crédulo pode dizer: – Não, mas as escolas são para todo mundo! Temos todos os mesmos direitos e blá, blá, blá… Todavia essa tese se destrói automaticamente quando nos tocamos que vivemos em uma sociedade capitalista e somos separados por classes sociais, existem pobres e ricos, escolas particulares e escolas públicas e consequentemente também somos separados entre negros, brancos, índios e etc. Essas separações limitam, criam e deixam de criar oportunidades diversas. Mais complexo que isso, por sermos fragmentados em diversas categorias cada categoria traz o seu encargo de oportunidades, sua identidade social que não é somente a que eu crio pra mim, mas sim como o outro e o coletivo me vêem. Acredito que não é preciso explicar as diferenças sociais que se implicam entre ser um negro pobre nascido em uma favela e um branco, classe média criado em um bairro “comum”, não é? Pois isso já está aí na nossa frente, o racismo é algo institucional o que significa que ele está em todos os modos de vida e estruturas estatais e, isso inclui, com toda a certeza, a escola e a universidade. Tanto camuflado ou não camuflado, leve ou forte, ele existe e nos atinge de modos parecidos e com frequência constante. O nível da universidade, esse não decai, foi comprovado que os cotistas têm desempenho melhor do que os não cotistas. Não sou eu que falo, são as estatísticas.

Com isso se conclui que não podemos discutir meritocracia em nível de vestibular se esses alunos chegam até o ensino médio passando por diferentes oportunidades de conhecimento a exemplo de: diferentes escolas, professores com melhores ou piores capacitações e por fim, não menos importante, diferentes histórias de vida. Isso já destrói a tese de vitimização do negro, dizer que o negro se faz de vítima para ganhar melhores oportunidades, como isso é possível? Se as oportunidades anteriormente nunca foram iguais, o negro não se vitimiza, ele já é feito vitima natural do sistema contra a sua vontade.

Faculdade de Direito UFRGS, 2007.
Faculdade de Direito UFRGS, 2007.

Em 2007 as cotas raciais foram implantadas na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), universidade na qual curso Psicologia. Neste mesmo ano na parede do prédio de Direito foi pixada a frase: “Negro só se for na Cozinha do R.U., cotas não!” Eu estava no terceiro ano do ensino médio e lembro até hoje do sentimento de inferioridade e de dor que aquelas palavras me fizeram sentir. Negra, estagiária, completamente desconhecida sobre como iria fazer para entrar na universidade, sem preparo algum, sem dinheiro para pagar um cursinho e, ainda por cima, extremamente atrasada comparada a todos os meus concorrentes. Já parou para imaginar quantos adolescentes negros não passam pela mesma situação diariamente? Daí você me diz: brancos também passam por isso, existe branco na favela, existe branco em escola pública. Eu rebato lembrando que não estamos falando de exceção aqui, mas sim de regra. Existem mais 50% de negros no Brasil e mais da metade deles está na favela. Todos, sem exceção alguma, já sofreu ou sofre racismo. As cotas são ações afirmativas que chegam para melhorar essa situação, dar uma oportunidade para um grande número de pessoas oprimidas e para, de certo modo, pagar uma gigantesca dívida social resultante da escravatura. Pra enegrecer/esclarecer mais a situação, entre em uma faculdade e me diga: quantos negros você vê? Ensinando ou estudando, daí compare esse número com os negros na cozinha do R.U (Restaurante Universitário), negros limpando os banheiros, cuidando da segurança e etc. Na minha faculdade existem muitos negros, mas só tenho quatro colegas negros na sala de aula, isso em uma turma de mais de quarenta alunos. Onde estão os negros no ambiente acadêmico? Sim, eles estão, em sua maioria, ainda na cozinha, porém esse não é o lugar deles, não é onde devem ficar com dizia a frase no muro da Faculdade de Direito da UFRGS.

Depois de todas essas informações se você é uma das pessoas de classe média vinda de uma escola particular que ainda acredita que as cotas são desnecessárias, sinto muito, mas tenho pena da situação que você se encontra. Também tenho quase certeza que você provavelmente está em uma situação de privilégio e de ignorância cega, mas não reconhece. Logo faça o melhor para todos nós cotistas, não oprima falando de meritocracia ou injustiça e que perdeu a vaga injustamente para um de nós, porque o cotista é alguém que estudou tanto quanto você para passar no vestibular. Você não é o oprimido nessa história, você é e sempre será o privilegiado.

Referências:

www.assufrgs.org.br/noticias/frases-racistas-contra-cotas-sao-pichadas-na-ufrgs/
tamarafreire.wordpress.com/2012/08/15/essa-conversa-nao-e-sobre-voces/
www.pragmatismopolitico.com.br/2012/11/cotas-alunos-cotistas-desempenho-superior.html/

11 comments
  1. Eu sou contra as cotas porque as pessoas cretinhas sem noçao e idiotas nos trata como se fossemos deficiente ou como se nao tivessemos capacidade de conseguir o que queremos …. Pra branco nao tem cota agora pra negro e indio tem que diabos é isso ? Afinal nao somos todos iguais?

    1. Karolaine, acredito existirem inúmeras publicações aqui que possam te ajudar na compreensão do porque somos a favor das cotas.
      É uma dívida histórica que nunca será retificada. Não somos todos iguais, nunca seremos.

    2. Se esse é o seu motivo para ser contra cotas, entao vc deve recapacitar a sua posiçao. No seu lugar eru começaria a defender as cotas com unhas e dentes e a lutar com argumentos sólidos contra os cretinos que pensam que as cotas para negros e indios reafirma a faltas d capacidades dos mesmos. As cotas nao tem nada a ver com capacidades e sim com oportunidades, que historicamente nos foram negadas. Desculpe, mas vc nao percebe que atuando dessa maneira, vc está justamente fazndo a jogada deles?

  2. Eu morro de raiva quando alegam que o cotista é menos preparado, que estudou menos. É mesmo muita cegueira, chega a ser má-fé. Jovens pobres, de um modo geral, sequer almejam ingressar em uma universidade pública. Aqueles que ousam ter esse sonho são aqueles que se tornam ótimos alunos, apesar das dificuldades que encontram na escola, e ainda precisam ouvir/ler baboseiras desse tipo.

  3. Muitos reclamam que “ah, mas haverá brancos discriminados pelas cotas!”. Todos estão solidários com os brancos discriminados. Supõe-se que é injusto discriminar alguém em função da cor. MAS, já existem “alguéns” discriminados, afinal de contas já existem pessoas, e são negras, discriminadas, e não é de hoje, desde sempre. Todos estão preocupados com os brancos discriminados, mas e os negros que, neste exato momento, JÁ SÃO discriminados? ninguém fala nada? por quê? porque são negros, então não têm problema, que se danem? e não fica por aqui.

  4. OI! Deixa eu te fazer uma pergunta. Não estou aqui para dizer que sou contra as cotas raciais, apenas tenho dúvidas quanto à coerência dessa política. Por que cotas raciais, se a grande maioria da população pobre é negra e, portanto seria beneficiada pelas cotas sociais? Por que diferir negros pobres e brancos pobres, se ambos têm as mesmas oportunidades escolares? Afinal, a reserva de cotas raciais dentro das sociais faz com que as notas de corte para os negros pobres sejam menores do que para os brancos pobres. Ainda não consegui uma resposta satisfatória para essa pergunta… Como você é a favor, talvez possa me dar argumentos! Obrigada.

  5. Excelente texto – Talvez ele seja as palavras que tento expressar mas não consigo, quando alguém vem me falar sobre meritocracia e vitimização da raça.
    Não é justo – Não há como conceber meritocracia sem bases iguais a todos. Não há como vitimizar, de modo teatral, quem já é oprimido.

    Pra completar, acho que o estopim do absurdo, não se dá pelas pessoas de classe média e bom ensino particular. Mas de uma massa de pessoas pobres, pardas ou negras e que não tiveram bons estudos [Consequentemente, boas oportunidades] e ainda assim se colocam na posição do opressor.

    A propaganda conservadora e elitista mostra sua eficacia mais uma vez, e de uma uma vez por todas.

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