“É de pequeno que se aprende”, dizia minha avó. Mulher, nordestina e negra. Foi de pequena também, em sua infância, que o racismo a marcou. 70 anos depois, ela ainda lembra de como foi preterida e humilhada e os olhos salgam.
Quantas de nós, ainda na infância, viveram episódios doloridos que só a maturidade trouxe a consciência do racismo sofrido? As experiências durante a infância tem um peso significativo porque é neste período que estamos elaborando nosso mundo simbólico.
Vivemos num país que tenta se embranquecer a todo o custo. A maior nação negra fora do continente africano tem um imaginário branco refletido nas novelas, nas propagandas, nos filmes, nos produtos vendidos e, principalmente, nas produções e produtos feitos para o público infantil. É preciso cuidar das nossas crianças negras fomentando dentro de casa, algo que dificilmente elas encontrarão na rua: a construção de referencial positivo que não invisibilize ou desvalorize a negritude.
Os pais negros, para além do papel de cuidar, educar e alimentar, têm mais essa tarefa de desconstrução diária de todo um referencial negativo sobre o negro que surge aos montes. Ou melhor, as mães negras cumprem esse papel na maioria das vezes e não raro, sozinhas.
Aquela sensação de que a mulher negra luta sozinha mesmo quando está em um relacionamento não só é real como foi mensurada. Foi constatado que o aumento na proporção de mulheres como chefes de família é maior entre as negras. Elas são maioria entre as famílias dos tipos “casal com filhos” e “mulher com filhos”: respectivamente, 52,4% e 55,2% do total das famílias de chefia feminina*.
(Em tempo: aprofundar a reflexão sobre como nós, mulheres negras, estamos criando filhos que mais tarde se mostram desrespeitosos com a mulher negra, machistas e sem noção do real sentido da paternidade é algo urgente!)
Diante de uma maternidade, não raro, solitária, elas que cuidam para que seus bebês e crianças absorvam símbolos favoráveis, principalmente no momento em que a noção de cidadania aparece no discurso dominante, tão atrelada ao consumo.
Além disso, as linhas infantis (programas, brinquedos) não refletem o pertencimento racial dos negros e apresentam apenas uma concepção eurocêntrica do mundo – onde não há espaço para os valores civilizatórios africanos, e não raro são sexistas reforçando figuras machistas e forjando identidades de gênero na opressão do que é “para meninas” e o que é “para meninos”.
Para entender como algumas mães negras lidam com o consumo infantil, fui conversar com três mamães. Abaixo, um resumo do que cada uma trouxe.
“Tento ao máximo rodear meu filho de brinquedos que fujam da ideia eurocêntrica e sexista do mundo, para isso o cerco de instrumentos musicais e de objetos coloridos que poderiam servir a meninos e meninas de qualquer parte do mundo. Evito carrinhos e outros brinquedos que demarquem a masculinidade e reforço bonecos e livros com crianças e seres de todos os tipos. Meu filho possui bonecos e livros com imagens de pessoas negras, aliás, de várias cores, mas privilegio negros e negras porque há todo um mundo branco fora de casa. Desejo que ele saiba da diversidade humana e se veja como parte disso, sendo bonito na sua diferença cultural e estética. Gostaria de ter sabedoria para criá-lo longe desse padrão de criança de hoje que quer tudo que olha. Evito ligar a TV quando ele se encontra acordado porque ela já estimula esse consumo, os bebês aprendem os símbolos facilmente. Espero que ele perceba desde pequeno que não precisamos de muitos destes produtos justamente porque seus fabricantes não estão pensando em nós quando os anunciam.”
Renata Felinto, artista plástica e mãe do Francisco de 7 meses.
“Ensino aos meus filhos que não se pode consumir à toa. Temos que respeitar as prioridades (comida e roupas) e nunca ter excessos. Como eles já são grandinhos, posso abrir diálogo sobre muitos temas e fico sempre tentando mostrar onde eles são valorizados e respeitados e onde eles se quer aparecem. Isso vale para marcas de produtos e canais de TV. Não há muitas alternativas de produtos que valorizem a diversidade étnico-racial para crianças, mas sempre busco ter elementos em casa que ajudem nessa noção de pertencimento, seja um quadro na parede, uma escultura, entre outros.”
Mara Vidal, jornalista e mãe do João, 14 e Maria, 9 anos.
“Dialogo muito com meus filhos sobre como o consumo traz necessidades construídas e irreais. Compro presente apenas em data como aniversário, Natal e Dia das Crianças e esses “presentes” nem sempre são produtos, podem ser um passeio no parque, por exemplo. Como mãe negra e sozinha, tento não cair naquela piração de “dar o que eu não tive” ou querer suprir a ausência do pai com produtos. Busco jogos que valorizem a coletividade, mas é difícil porque a maioria traz em seu bojo a violência, principalmente os games. Fico bem à vontade quando vejo meu menino de 3 anos brincando de boneca é um momento de construção simbólica onde ele está aprendendo a ser pai.”
Lúcia Oliveira, mãe da Júlia, 11; Beatriz, 9 e João Pedro 3.
Esses depoimentos trazem inúmeras reflexões. O consumo é força motriz de um modelo de desenvolvimento que historicamente excluiu e marginalizou negros e negras. O nosso fortalecimento identitário dificilmente virá da mídia e da indústria que são regidas pela lógica do consumo e pasteurização. Acredito que seja mais uma luta coletiva e que a sororidade entre mãe negras é primordial nesse processo. A exemplo disso, Renata Felinto criou um grupo no Facebook chamado Escambo dos bebês, para mães que desejam trocar bens adquiridos para seus filhos. Nossa força está justamente em trocar experiências, sentimentos e partilhar descobertas.
*IPEA, 2011.
** Créditos da foto de Renata e Francisco: Barbara Richter.