Há situações em que as pessoas tentam me convencer que o silêncio é a melhor opção para que eu seja aceita. Isso não é porque o que eu falo não possui coerência em relação ao contexto que surge, mas sim devido ao fato do que eu falar romper com a lógica naturalizada pelas tantas hierarquias organizacionais abusivas (principalmente acadêmicas) de que eu devo falar o que agrada. Não importa o tom doce que eu use, não importa a compreensão que eu peça por determinadas coisas me causarem desconforto e ser vital, para mim, o ato de me expressar.
O silêncio já me foi tão caro que hoje não me importo muito se o contexto não é favorável à minha enunciação. Nenhum contexto dá aval para que eu seja desrespeitada ou que engula opressões por cordialidade, porque nos ensinaram que passividade abre portas. Eu entendo a escolha pela passividade, contudo, não quero ser demonizada por não optar por ela e infelizmente é isso que acontece. Sempre me deparo com “conselhos”, especificamente de pessoas brancas cujas existências não possui muitos desafios em muitos espaços dessa sociedade, de que eu deveria aceitar tudo que me é imposto, pois isso é melhor para mim. Nenhuma delas se quer me perguntam como eu me sinto em relação a isso, se aceitar não me machuca internamente ou se é fácil para mim tal opção ou do por quê de não ser tão fácil assim.
Talvez eu seja uma inconformada por natureza e deva ceder, porém, como diz o poema Torpedo de Cuti, é preciso ter cuidado com “a técnica de se fingir de morto/ porque muitos abusaram / e entraram em coma”. Por isso, eu tenho medo de ser convencida de estar morta e perder toda a habilidade de revoltar-me contra tudo que é dito e sustenta essa sociedade excludente. Na Universidade, infelizmente, até na pós-graduação, isso é muito comum. Naturalizaram abusos e violências como sendo algo comum a uma estrutura hierárquica sustentada pelo mito do imutável. Desse modo, muitas coisas acontecem, pessoas adoecendo, pessoas endurecendo, pessoas artificializando-se para caber e conquistar algum espaço. Aqui, na academia, há pessoas maravilhosas também, engajadas e atentas ao que dizem, preocupadas em relação a diferentes pautas sociais, no entanto, possui pouca evidência, como isso é estranho, não acham?
Se a convivência com o outro me exige um silêncio dolorido, eu prefiro não conviver, caso eu tenha essa escolha. Quando não for possível, eu tento estabelecer limites, o meu corpo não é um território sem fronteiras, minha mente não é um Brasil abandonado e vazio, eu não sou fantoche de ego algum, construir-me naquilo que quero ser – pretativista e intelectual – exige tanta força que há dias que fraquejo e choro.
Nas convivências mais recentes, eu percebo uma tentativa de domesticação misturada ao medo, aquele famoso medo de ativistas negros que algumas pessoas brancas têm, já repararam como isso se manifesta? As pessoas brancas querem ter domínio até naquilo que pensamos e na forma como pensamos, tentam isso de diversas formas, por meio de uma simpatia exagerada e de uma forçação de intimidade, mas como isso é só um estratagema, talvez inconsciente, ou não, sempre escorregam. Então, quando descobrem que a minha voz não pode ser escravizada, mudam o semblante, tentam e tentam fazer com que eu acredite em suas boas intenções quando o discurso só exprime privilégio e o famoso universalismo branco de que “somos todos iguais”.
Estou escrevendo aqui correndo um grande risco de ser lida por quem está próximo de mim e provocar no coração doce da branquitude ao meu redor o ódio, peço desculpas, a minha intenção é ser escutada sem barreiras de qualquer tipo. A nossa convivência nunca será possível se me forem impostas condutas que só os engrandece, enquanto me diminuem, ou de exigir o meu afeto sem o mínimo de reciprocidade, como se até nisso, eu devesse ser escrava. Não quero nenhuma Princesa Isabel ou qualquer outra(o) abolicionista simpatizante querendo enunciar sem se propor a ouvir o peso das coisas que eu também tenho a dizer e da forma como eu preciso dizê-las.
O silêncio imposto me custa caro e já não tenho mais condição de arcar com ele, não me fornece paz de espírito, não me engrandece, não me abre portas, apenas me estagna no limbo social como se eu fosse um “criado mudo”. Ah, quantos silêncios cabem nos nossos corpos pretos? Há um outro silêncio, o qual nem deveria ser visto com bons olhos, é aquele de quando estamos cansadas(os), incrédulas(os) em relação à potência de qualquer diálogo entorno do racismo ou de qualquer outra pauta que nos envolva.
Além disso, parece que até o meu silêncio incomoda quando eu não estou sorrindo, pois é preciso cessar a voz com um belo sorriso no rosto, aí de mim se eu não sorrir, serei interrogada a respeito do meu silêncio ou estereotipada como a negra violenta insubordinada. A insubordinação só é estereótipo na pele preta, porque branco quando é insubordinado é revolucionário, a frente do seu tempo, uma joia que precisa de espaço para ser aquilo que quiser, uma peça fundamental para mudança social.
Ah, e falando em mudança social, ela só é possível a partir do meu silêncio? A minha voz não deveria causar ressentimento e nem ser lida como sendo isso. A sociedade não me deu condições materiais e simbólicas para pagar o alto preço da voz e nem mesmo o do silêncio imposto, por isso, viver socialmente, às vezes, é tão confuso. Só quem passa por isso consegue me entender bem. Eu, realmente, gosto quando a minha voz surpreende o meu ouvinte pela sinceridade e reflexão que busco promover, em prol da minha coerência enquanto ser. Falar, para mim, é reaprender a ter o meu autodomínio, alinhar a mente ao meu corpo em uma lógica decolonial de quem se conecta ao ponto de não ser escrava nem mesmo dos próprios medos e angústias.
Não irei pedir para romperem o silêncio imposto, eu sei como é custoso também isso. Não irei pedir a ninguém nada, nenhuma ação, a não ser nunca exigir de mim o silêncio, eu não os darei, não importa a força que usem para tê-lo, não os darei. Agora, pensando mais profundamente, corpos pretos tem dois silêncios, o nosso e aquele que nos é imposto. Sobre o meu silêncio, ele é um quilombo interno, não é uma senzala como é o silêncio imposto.