É comum vermos reclamações sobre quando se apontam certos privilégios, e nas últimas semanas isso ficou mais nítido. Entretanto, é necessário revermos esses privilégios, senão jamais iremos avançar e ter uma sociedade em que mulheres não sejam agredidas, não ganhem menos e não estejam aprisionadas a contratos sociais. Se não refletirmos, ao menos um pouquinho, sobre os privilégios que nos cercam, será impossível acreditar em um mundo em que mulheres durmam em paz e sonhem com alguma realização pessoal e independente de outras pessoas.
Somos relativamente livres para acreditar no que quisermos, nos denominarmos da forma que bem entendermos e seguirmos o caminho que julgamos melhor. Muito sangue e muitas lágrimas foram derramadas para que isso fosse possível em 2016. Não por isso podemos fechar os olhos para o que acontece ao nosso redor. E do outro lado do Túnel Rebouças, que divide a cidade do Rio de Janeiro entre a zona sul-rica e a zona norte-pobre, acontecem coisas inimagináveis para quem se recusa a atravessá-lo.
É normal, por exemplo, achar que o flerte é um “estado de graça a ser preservado”. Mas é estranho confundir flerte com assédio. Uma pesquisa específica sobre cantadas de rua mostra que 99,6% das mulheres já foram assediadas. E assédio não é chope no Veloso, almoço no Fasano ou caminhada na orla. Assédio é “gostosa”, “te chupo toda” e “que delícia!” quando você está caminhando para o trabalho; assédio é você trocar de roupa por medo de ouvir isso em certos lugares (90% das mulheres já fizeram isso).
É doloroso, mas é necessário ir além: do lado norte-pobre do túnel, ficam muitos filhos sem mãe ou avó, num lar já sem pai, para que essas cumpram a função de “mãe social”, ou babá, como queiram. Se estrutura social é lenda, imagine assim? E lá realmente não há creches, nem escolas, nem Estado. É a rua que cria os rapazes filhos das babás. E elas, injustamente, ainda serão culpadas caso algo de ruim aconteça através ou com eles.
As babás são vistas como mães sociais. Mães sociais são as amas de leite da época da escravidão, as que eram abusadas pelos senhores de engenho. São elas que, hoje, ficam com a “parte difícil” de ser mãe. Criam os filhos dos outros para sustentar os próprios – que elas nem conseguem ver. São tidas como quase da família, mas muitas vezes almoçam de pé na cozinha e têm que usar uniforme. São elas que perdem Natal e Ano Novo quando, lá no fundo, dariam tudo para estar com a família – a de verdade, não a social. Mães sociais também têm que ser mães de verdade, pais, avós, e se dividirem em muitos empregos. A zona sul paga “bem”, então elas vão da Pavuna à Ipanema num metrô lotado, diariamente, para sustentar os seus filhos – os de verdade, vale repetir.
Elas são lindas, sim. Deusas. Graciosas, fortes, delicadas, únicas. Toda mulher preta é, e isso realmente nenhuma mulher branca vai experimentar. “Eu adoraria passar por isso”, algumas irão dizer. Mas as mulheres-mãe-sociais quase nunca percebem sua beleza. Ninguém deixa.
Os homens que gemem e uivam para elas nas ruas, nas obras, raramente as pegariam pelo braço e levariam para sair (nem estamos falando de Veloso ou Fasano, aqui). Apresentar para a mãe? Difícil. Mulatas para foder, não era isso que tristemente diziam? Há dúvida se todas elas sabem disso. E há tristeza em confirmar que muitas não sabem mesmo.
Mas alguém que teve contato direto e oportunidades inúmeras de construir um pensamento mais amplo deveria ter um pouco de consciência sobre o assunto. A mulher preta (o termo “mulata” é errado, a saber) é marginalizada a vida toda. Um assédio em forma de uivo não é flerte, é objetificação. O assédio nos diminui à medida que nos lembra da posição que querem que estejamos. Os gemidos nas obras fazem parte da mesma cultura que “exporta mulatas”, expõe mais a mulher negra à violência obstétrica e faz aumentar, em dez anos, o número de mortes violentas. Em relação à mulher branca, esse número caiu cerca de 10%.
Quando se está do lado sul-rico é difícil imaginar que o “elogio” inocente e a morte a pauladas estejam relacionados, mas se todos começarem a refletir que, infelizmente, vivemos em uma sociedade desigual e racista, talvez seja mais fácil. Nem tudo é a orla, então precisamos reclamar da desigualdade e do racismo, sim. Reclamar dos seus agentes, reclamar muito. Até agora algumas vidas já foram salvas por essas reclamações, vistas por muitos como vitimização. A luta é para mais. Para que Irenes, Marias, Rosas e Glórias sejam realmente livres e sem medo, porque admiráveis elas já são – apesar da violência cotidiana a que estão expostas.