Monogamia. Substantivo Feminino. De acordo com o dicionário: “Sistema no qual o homem não pode ser, simultâneamente, esposo de mais de uma mulher, e a mulher esposa de mais de um homem.”
Há algum tempo, desde que eu me entendo por gente, para ser mais precisa, eu me enquadro no campo das pessoas que não se sentem confortáveis com a monogamia – namoros, casamentos, relacionamentos de exclusividade em geral. Sempre me vi, quase que de maneira militante, defendendo que nós, homa/o sapiens sapiens não fomos concebidas/os para nos encaixar num sistema em que duas pessoas amem somente uma à outra e que se relacionem sexual e afetivamente apenas entre ambas/os. Mas especificamente, eu nunca fui capaz de enxergar como coisas naturais o namoro, o noivado e a “finitude-eterna” a que se implica o casamento.
Sempre estive tão incomodada com essas relações que chego, até os dias de hoje, a me sentir completamente constrangida quando sou questionada sobre se tenho, ou não um\a namorado\a.
Lembro-me perfeitamente que, ainda no Ensino Fundamental, eu não me via inserida naquelas fantasias da/os minhas/meus amigas/os. Ou melhor, eu me imaginava sim, como uma personagem de contos-de-fada. Vestida num vestido branco sendo feliz para sempre ao lado de um “príncipe encantado”. No entanto, eu jamais me permiti fazer parte das conjecturas públicas sobre o assunto. Sempre me pareceu inapropriado que eu pudesse pertencer àquele grupo seleto, apesar de o tema preencher o meu imaginário adolescente.
Com o passar dos anos, fui me aprimorando, não só na repressão dessas fantasias tolas, como na argumentação anti-monogamia que reproduzo constantemente e à qual me apeguei vorazmente.
No entanto, recentemente, houve um episódio que me fez refletir sobre a raiz desse meu posicionamento orgânico quanto aos relacionamentos monogâmicos.
Procurando páginas no facebook que pudessem encorajar uma amiga no seu processo de transição capilar e de aceitação de sua beleza, descobri a página “Negras no Altar” e o blog a qual ela responde. Como era um universo de convergência entorno da negritude; eu curti a página e passei a me deparar com aquele universo paradigmaticamente clichêresco e novo, diariamente na minha “timeline”. Eram as mesmas rotinas de quaisquer outros bolgs\páginas sobre casamentos, mas tonalizados de maneira diferente. Eram mulheres negras se apropriando de um universo pretensamente branco.
Me soava muito novo que houvesse um grupo de mulheres negras preocupadas com a afirmação de seus cabelos crespos durante suas respectivas cerimônias de casamento, quando eu não conseguia visualizar aquele espaço como um ambiente também de inserção da pauta de negritude. Foi então que eu comecei a me pegar constantemente refletindo sobre o tema. Eu queria começar a entender o porquê da não sensação de pertencimento que o universo da monogamia em geral provocava em mim e fui, então, decifrando meu enigma.
As primeiras referências sobre monogamia que temos, ainda na terna idade, são providas pelas nossas famílias. Meus pais foram casados. Vestido branco. Igreja. Álbum de casamento. Mas para mim, a história deles não me cabia enquanto referência.
Fui acostumada, desde criança a entender que às mulheres negras estava reservado o lugar de concubinas, rameiras, amantes, “empregadas assanhadas”. Sempre que me deparava com casamentos, nas novelas, na literatura popular, no cinema, era sempre o roteiro de uma história contada apenas à mulheres brancas. Um namoro. Um pedido. Um noivado. Um casamento.
Quando se trata de mulheres negras, sempre aprendi que nada de clichê havia em nossa trajetória de construção de famílias e que a monogamia não nos dizia muitas coisas. Somos mães solteiras. Mulheres que jamais tiveram a oportunidade de ambientar o imaginário daqueles que concebem histórias de amor que seguem os padrões monogâmicos. Nas novelas, o caminho que leva uma personagem negra ao altar é sempre tortuoso. Um envolvimento inapropriado, uma diferença de classe gritante, a luta contra o preconceito e a realidade de uma família não tradicional.
Não se admite que mulheres negras tenham o direito à tranquilidade de uma vida monogâmica. Fomos forjadas tais quais mantas kevlar para suportar, unilateralmente, as nuances de uma vida de batalha. Fomos ensinadas a ser sozinhas. A parceria de um relacionamento conjugal monogâmico não se encaixa com a nossa melanina.
Essa questão também permeou as discrepâncias que traduzem o feminismo negro. Enquanto algumas mulheres brancas, tramam uma fuga contra um padrão de monogamia que as aprisiona e subjuga, mulheres negras se perguntam por que esse caminho nunca foi uma opção.
Agora, formamos um grupo de mulheres adultas, pretensamente incapazes de nos ligarmos a outrem de maneira exclusiva, pois isso parece ameaçar a nossa independência e não nos traduzir felicidade. Na realidade, me parece é que não merecemos ser amadas. Não é esse o nosso papel. Não há no mundo quem tenha essa incumbência.
Monogamia pra quem (?), eu me pergunto. Para mim, cujo lugar no mundo não é o de protagonismo, mas o de subserviência?! Sim ou não?
Ainda me sinto confortável quando debato sobre a monogamia enquanto um ente que aprisiona; apesar de compreender perfeitamente que todas/os podemos, de maneira consciente, conceber a exclusividade como algo a que se esteja destinado. No entanto, não me eximo da sensação de que a monogamia ainda é um universo inteiramente distinto à mulheres negras.
E nesse sentido, me sinto no dever de questionar o papel dos homens negros nessa empreitada pela constituição de uma família por meio de um relacionamento heterossexual monogâmico – que, obviamente não é o único meio nem o correto, mas é o que se aplica à presente reflexão. Se somos toda/os homens e mulheres, parceiros na luta anti-racista, é fundamental compreender o papel do homem negro como agentes de opressão às mulheres que os rodeiam sendo, talvez, as principais referências de abandono afetivo as quais somos submetidas.
Também como vítimas na engrenagem social de reprodução do racismo, os meninos não são ensinados a reconhecer em suas/seus companheiras/os de cor beleza e afetividade; reproduzindo, por fim, um comportamento social de negligência e muitas vezes de violência perante suas parceiras. As estatísticas não me deixam mentir. Encabeçamos os índices de mães solteiras, chefes de famílias, vítimas de exploração e violência sexual. E são os homens negros que parimos e educamos agentes dessa barbárie racista.
Precisamos de uma educação que nos faça mais fortes e nos ensine a resistir ao racismo, que nos ensine a não reproduzir várias práticas opressoras ante nossas/os pares ou abaixar nossas cabeças. Precisamos de uma educação que rompa com o silêncio. Precisamos de ambientes de militância como centros educadores!
Sim? Sim! Mas não, não é o suficiente.
Nos espaço de militância anti-racista; homens e mulheres, lado a lado, numa ação conjunta de resistência e libertação são pegos de surpresa pelo patriarcado em sua esfera mais cruel. Não se assustem, pois o patriarcado também pode ser interseccional enquanto regime opressor. Aqui, nesse espaço que deveria ser de convergência negra, nos deparamos com homens negros oprimindo descaradamente mulheres negras, contribuindo para a desconstrução ad auto estima e da afetividade delas.
É sempre comum o sujeito negro, que faz as falas inspiradoras e demonstra a máxima solidariedade para com a luta feminista-negra, ser pego em ações opostas ao que prega. Relaciona-se afetivamente com as meninas brancas de maneira pública e notória, mas mantém escondidas as mulheres negras que seriam suas parceiras de militância. Reproduzem a lógica da objetificação de nossos corpos negros e da secundarização de nossas peles enquanto sujeitas à afetividade. Nos oprimem no que deveriam ser espaços de desconstrução de privilégios e fortalecimento da resistência. Fingem escutar nossas demandas e se solidarizar, mas não são capazes da real reflexão. Não são capazes de transmutar em ações cotidianas de luta anti-racista as falas vazias que se orgulham de proferir.
Monogamia pra quem (?) eu volto a me perguntar. Para mulheres brancas, realidades brancas, afetividades brancas, sonhos brancos. Para homens negros que dormem conosco às escondidas e desfilam com elas. Mulheres não são troféus, mulheres não são cartas de alforria, mulheres não são a redenção de uma história de violência e animalização de nossas realidades.
Nós, mulheres negras, somos merecedoras de amor e nada mais!