Por Aline Djokic para as Blogueiras Negras
O embranquecimento é um problema. Eu que o diga! Semanas atrás tentaram roubar o meu filho, no sentido figurado, mas ainda assim. Uma mulher branca começou a interagir conosco num consultório médico e em poucos segundos, ficou claro que ela aceitava o meu filho, que tem fenótipo predominantemente branco e me rejeitava por ser negra. Foi exatamente nesse momento que se deu o tal “roubo”. Ela, através de seu comportamento, mostrava que, eu, mulher negra, ainda que mãe daquele indivíduo, já não tinha direitos sobre ele; por ele não mais se parecer suficientemente comigo. Naquele momento, o mundo racista, representado por aquela mulher, estava me dizendo: “Obrigada receptáculo, missão cumprida, o filho da redenção foi aceito. Seu filho será reconhecido como branco e fará a partir de agora parte da nossa liga“.
Com esse texto eu gostaria de dar uma resposta à esse “roubo” e à essa oferta tão generosa de redenção. Hoje, eu gostaria de dizer: Obrigada, mas não quero. Eu não quero a sua redenção, eu não sou a encarnação da sua fantasia cristã. Eu não sou Maria.
Na construção do mito da redenção através da miscigenação, há também uma forte carga de mitologia cristã, como em toda a construção do racismo. O homem branco feito à imagem e semelhança de Deus, e assim, ele mesmo, o próprio Deus; desprovido porém de divindade, que ele recupera ao desumanizar o homem negro. Mas, aprofundar esse assunto daria outro texto, por isso me limitarei à questão da mulher negra e a construção de sua afetividade pelo cristianismo.
O cristianismo separa as mulheres em Evas e Marias. Ou seja, em pecadoras ou redentoras. A mulher que questiona as leis de Deus, que ousa tomar decisões sem consultar o homem, que vive sua sexualidade, é considerada uma Eva, a pecadora que é responsável pela queda do homem, pela perda de sua divindade. A maldição que Deus impõe à mulher não é nada justa, ela perde o controle sobre si, sua vontade pertence ao seu marido; e sua sexualidade, representada pela reprodutividade, será para sempre associada à dor. A não aceitação do prazer sexual feminino é uma fantasia cristã. A maldição que pesa sobre o homem é imensamente mais leve, pois pode facilmente ser terceirizada. Quando o homem branco escraviza o homem negro para viver do “seu suor”, ele reestabelece sua divindade e livra-se, assim, da maldição imposta.
Mas, e a mulher branca? À ela também foi dada a segunda chance, na figura de Maria, a mulher-receptáculo, que se regozija na gravidez involuntária. Quando o anjo aparece à Maria, ele a parabeniza pela gravidez. Ele não diz: “Deus pediu pra perguntar, se você quer parir o redentor“. Se Maria ficou grávida contra a sua vontade, podemos considerar o momento da concepção, um momento de violência, ainda que simbólica. Sim, realmente essa não foi uma boa troca… Ao invés da negação do direito ao prazer sexual, a mulher carrega agora a maldição da violência sexual justificada. Qualquer ligação à obsessão de cristãos em impedir que mulheres violentadas tenham acesso ao aborto, não é mera coincidência. Assim como também não é coincidência a visão de que a miscigenação originada no Brasil, através do estupro de mulheres escravas, tenha na verdade sido algo consensual, e não uma violência.
Quando a mulher, através do movimento feminista, começa a questionar sua posição subalterna e sua imagem distorcida na sociedade, ela começa a desconstruir todo esse estigma que lhe fora infligido pelo cristianismo. A mulher negra, porém, não foi incluída nesse processo e vê repousar sobre si toda a estigmatização que antes da escravidão pertencia à mulher branca. Combater o racismo e o sistema que o apoia é assim também uma tarefa do feminismo. A sociedade fundamentada no cristianismo, e que até a chegada da Renascença via Deus como o centro do universo, vê agora o homem como o centro deste. E é aí, onde está o problema, pois esse homem, centro do universo, é o homem branco.

Ora, se o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, então ele é Deus. A única coisa que os separa da total equidade é a mortalidade do homem branco, é sua humanidade. É necessário torná-lo sobrehumano, status que ele alcança através do racismo. Ao desumanizar o homem negro, o homem branco eleva-se à categoria divina. Deus continua sendo o centro do mundo, e o mundo continua cristão. E como manda a tradição cristã, é necessário que outro carregue a culpa pela queda do homem.
A solução encontrada foi projetar tudo o que o homem branco e cristão associa ao mal, à queda de Adão, à perda da imortalidade, no homem negro. E à mulher negra coube o papel de assumir o lugar de Eva, quando a questão é a sexualidade proibida e o lugar de Maria quando mostra-se suficientemente passível de redenção. É por isso que a sociedade vê em mim e na minha miscigenação um ato de redenção. Assim como vê na mulher negra que dá a luz à um filho negro, a perpetuação do pecado. E todos sabemos que, o salário do pecado é a morte.
O poder dessa memória coletiva é imensurável, a sociedade age de acordo com ela sem questioná-la. E reproduz o preconceito mesmo não pertencendo à esse grupo religioso. Questionar o cristianismo e seu poder na construção da estigmatização dos negros na sociedade brasileira é algo que não pode continuar a ser entendido como mera questão religiosa.
16 comments
Belo seu texto,não concordo plenamente mais as palavras tem poder e quem sabe escrever mais ainda . Sou negra meu marido muito branco ,não escolhi a cor escolhi o amor deveria ser sempre assim .não deveria existir discussão sobre tudo isso, de que cor era Eva? Jesus?Maria ? nossa como saber tal coisa .Meu filho considerado branco, e não me importo (livre arbítrio) ele esta livre para escolher se ele decidir sou negro (lindo) sou branco ,Japonês,Mulato (lindo também) somente nomes inventados .O que manda e o respeito a todos estes nomes dados pelo homem, importante ele saber o que significa ser humano antes de tudo dar Amor ser Amor e rir de todo preconceituoso como se entendesse a ignorância como uma piada mal feita. Meu filho e mais parecido comigo ,mas devido a cor todos dizem que parece com o pai ,não me importo ele e muito mais que isso e não precisa se parecer com nenhum de nos dois somente com ele mesmo. Espero que não seja nada parecido com nenhum de nos ,pois e chato um livro repetitivo sendo muito mais emocionante um livro cheio de aventuras e ideias novas .
Me perdoe a falta de alguns acentos ,e juro ser culpa de meu teclado doente.
Você foi tão maravilhosa no seu texto! Parabéns!
Isso me relembrou uma dúvida que volta e meia tenho, e eu queria fazer uma pergunta: como é, para uma mulher negra militante, ter um/a filho/a socialmente branco/a? Como essa criança deve ser educada? Como negro e pronto? Como socialmente branco detentor de privilégio?
Se por um lado ser filho/a de uma mãe negra o/a faz negro/a, por outro, essa criança goza, sim, dos privilégios que o fenótipo (mais próximo ao) branco proporciona. Há muitas pessoas socialmente brancas que alegam ter país e avós negros somente para ter direitos das ações afirmativas, por exemplo. Mas a gente sabe como funciona a questão fenotípica e genotípica no país, não é? Como você, como mãe, vê a questão?
Quero ter filhos/as, mas essas coisas ficam martelando na minha cabeça. Tenho medo, sinceramente.
Olá Gilza!
que maravilha, uma pergunta que vem com resposta! Você já tocou todos os pontos importantes e eu concordo com você. Meu filho é branco, é assim que ele é reconhecido, sendo assim ele desfrutará de privilégios que uma pessoa reconhecida como negra jamais poderá desfrutar numa sociedade racista como a nossa. Seria impensável que eles usasse sua descendência para usurpar o direito às cotas de outros descendentes de fenótipo passível de discriminaçåo. Isso seria envergonhar seus ancestrais e eu farei o possível e o impossível para que isso jamais aconteça. Ainda assim ele tem o direito de conhecer a cultura negra que formou a identidade da mãe dele e que vai influenciá-lo de alguma maneira. Mas essa parte da identidade dele, será aquela que estará em pouca interação com o mundo exterior ou com a sociedade branca em que vive. Um abraço!
Perfeito
Aline,
Suas palavras sao de uma exatidao que assusta por inegavelmente retratar nossa realidade. Parabéns pelo belíssimo texto.Beijao
Desculpe a paixão com que escrevo. As bases usadas para atacar o Catolicismo foi o senso comum e destoa da verdadeira visão Igreja sobre a mulher, o pecado, a redenção e outros pontos e ofende a mim e todos católicos.
Assim como você, escrevo sem citar fontes mas pode me contactar pelo e-mail para que eu as disponibilize. A Teologia do Corpo de João Paulo II, está em voga e pode esclarecer alguns pontos.
O que você descreve é uma paródia sobre o catolicismo. A paródia que até muitos católicos acreditam ser o catolicismo.
Não é a mortalidade a única coisa que nos difere de Deus. Somos feitos somente à imagem e semelhança. Não somos cópias fiéis.
Provavelmente, Maria não era branca, assim como Adão e Eva que vieram do pó. Eles eram negros como nós. E só há reverencia à Maria porque ela é humana como nós e poderia ter dito NÃO. Ela acreditou que a vontade de Deus deve prevalecer mas não era diferente das Marias que conhecemos. Ela sentiu medo, tinha 15 anos quando engravidou e ainda não estava casada. Igualzinho uma maria na nossa época.
A sexualidade não é vista como pecado. Pecado é o que nos afasta de Deus. E o sexo não nos afasta, ter um filho não é aquilo que nos deixa mais próximo do mistério Divino?
Ser mãe é incrível e assustador. Mesmo com tudo programado não sabemos se dará certo, não sabemos se nossos filhos terão saúde, educação e tudo que desejamos. Maria também não sabia mais confiava. Ela não via Deus, assim como nos não vemos.
Nós, católicos, acreditamos que filhos são bençãos e TODA vida é sagrada porque não provém de nós. Quantas mulheres tem vários filhos? Para Igreja essas são as mais abençoadas, porque há a consciência de que estão abrindo mãe de diversas oportunidades para cuidar de outras vidas.
Você é mãe, entende o que estou dizendo.
Também tenho um filho que parece branco. As pessoas tentam convencê-lo que ele é “café-com-leite”, moreno e essas baboseiras.
Ele sabe que é negro. Ele sabe que meu cabelo é crespo e que é perfeito e lindo porque Deus nos faz perfeito, é a gente que acredita que a perfeição é o que querem fazer de nós e o que queremos fazer de nós mesmos.
Você sentiu raiva dessa mulher, sentiu-se invadida e ofendida, eu sinto isso toda vez que querem tirar a negritude de meu filho mas ele já está feito e a verdade é negra, como ele, eu e você.
Olá Joyce,
Por favor não se zangue, pois esse texto não tem nada a ver com religião. É uma análise de como o homem europeu tem usado a religião como arma para dominar, destruir e escravizar povos. Tudo isso vem sendo documentado e estudado há séculos, alguns desses estudiosos foram até mesmo perseguidos por diferentes denominações cristãs. Sim, meu texto não tem fontes, mas que eu saiba, isso não é necessário num blog, apenas em trabalhos científicos. Ainda assim, segue abaixo textos que me apoiaram na minha reflexão. Eu confesso que seu comentário me entristece, pois é uma prova de que a mentalidade cristã, de que é necessário calar toda a opnião contrária aos dogmas da igreja (no seu caso a católica), continua muito forte entre seus fiéis. Isso deve-se ao fato do cristianismo ser uma apropriação de tradições judaicas, que lhe será sempre um enigma, pois a ancestralidade é algo que não se pode aprender ou simplesmente adotar. Isso causa insegurança que muitos acreditam ser necessário vencer através do despotismo. Por isso é que o cristianismo tem essa obssessão em apropriar-se, desconstruir e negar, como fez por séculos com os judeus e suas tradições, para não citar outros povos… A minha análise tem a ver com psicologia, história e sociologia e política. Você não precisa disso para acreditar em deus. Isso não é e nunca será um empecilho para qualquer fé. É direito seu não questionar o seu deus, mas é dever meu analisar o que homens fizeram em seu nome.
Segue abaixo alguns dos textos que me ajudaram na análise:
Mecheril, Paul – Psychologie und Rassismus. Rowohlt, bei Hamburg 1997.
O mito de Sísifo – Albert Camus. Editora Record 2008.
Assim falou Zarathustra – Friedrich Nietzsche. Companhia da Letras
Das kulturelle Gedächtnis – Schrift, Erinnerung und politische Identität in frühen Hochkulturen. Beck Verlag 1997.
Linguagem, mito e religião- Ernst Cassirer. Editora Res 1989
Um abraço.
Perfeito
ESTOU ENCANTADO COM SEU TEXTO ,CONCORDO TOTALMENTE COM ESSA COLOCAÇÃO SOBRE ESSE ASSUNTO,PARABÉNS PELO TEXTO.
Obrigada Carlos! Me alegro que tenha gostado!
Muito interessante e esclarecedor o texto. Nunca tinha pensado nestes termos. Obrigada.
tradições abraâmicas e nao crista.
Eu, pessoalmente, nunca tinha me inserido neste universo de discussões, as quais tem tão a ver comigo! Incrível como assuntos como este sejam tão pouco debatidos, vistos, escritos. E é incrível também como estes assuntos são sim, tão palpáveis ainda nos dias de hoje. Lembro de minha tia e minha falecida avó dizendo:” Juliana, você tem que limpar a família, minha filha! Tem que namorar com um branco!”, referindo-se a um namorado negro que tive, quando o levei até minha família. Sendo eu, tão negra quanto ele, fiquei sem chão,perplexa! Quer dizer que eu e ele, pelo fato de sermos negros somos sujos e vamos espalhar essa sujeira?! Porque a partir do momento que elas se referiram dessa maneira a ele, com toda certeza eu estava inclusa, de forma involuntária! Não devemos deixar mesmo de discutir esses assuntos, em defender nossa raça, em mostrar àqueles que alimentam o racismo o quanto eles são medianos em tentar nos posicionar desta forma!!!!
Obrigada, Juliana! Continue questionando! Entender é deixar de temer! Muita força e um forte abraço!
Boa Noite Aline, teu texto é Incrivelmente esclarecedor e infelizmente verdadeiro. Vive-se sob varias “cortinas de fumaça” e começar a enxergá-las é o ponto de partida para a “redenção”, mas não a tal redenção que quer se impor ao oprimido e sim a redenção do ser humano para com ele próprio! Realmente gostei muito do texto. Parabéns!
Obrigada, Adriano! Pena que esse plano de redenção tenha sido construído para dominar e escravizar! Gostaria de ver essa pauta sendo discutida com mais frequência entre os cristãos… Um abraço, e obrigada pelo comentário!