Viajar traz várias possibilidades, inclusive a de se reinventar, tornar-se outra pessoa, ainda que temporariamente. Porém, se falamos do lugar de uma viajante negra, é impressionante como categorias de raça, classe, gênero, cruzam-se e derrubam nossas especificidades, tornamo-nos “a mesma coisa. Isso é resultado tanto do olhar do outro, que ignora nossas subjetividades, quanto da nossa experiência, que nos aproxima.
Nesse texto, que é mais um relato de uma experiência, vou abordar como mulheres negras, nas suas subjetividades (corpos, idioma, roupa e outros importantes marcadores sociais e culturais) são pessoas nada benvindas quando adentramos uma sociedade eurocêntrica, – especuloque caminha para um franco processo de conservadorismo radical e violação explicita de direitos de homens e mulheres não-brancas. Poderia ser Brasil, mas estou falando dos Estados Unidos.
Chegando no aeroporto da cidade de Atlanta – Georgia, a impressão que se tem é que estamos em outra cidade negra, Salvador. Todas as pessoas que limpam, carregam, empurram, são negras. Interrompo meus pensamentos quando ouço “next”. O oficial de imigração pergunta o que eu tenho na bolsa e em seguida me informa que eu deveria passar por uma averiguação.
Enfim estávamos na tal fila de averiguação eu, meu filho, e na minha frente, duas senhoras negras em trajes tradicionais. Atrás de mim, estava uma senhora negra numa cadeira de rodas que lembrou-me muito a minha avó paterna. Esta senhora perguntou o que eu fazia na fila, e quando lhe disse o motivo (as frutinhas do meu filho colocadas na bolsa pela minha mãe) ela resmungou novamente achando aquilo um absurdo. Sua mala havia sido perdida pela companhia aérea.
Logo entendi que elas todas eram nigerianas e haviam acabado de chegar de um vôo de Lagos. E lá estávamos nós, todas mulheres negras, além do meu filho que eu carregava no colo, numa fila de averiguação devido às nossas marcas culturais, raciais, de gênero. Na minha bolsa, estavam as frutas dos trópicos que nos Estados Unidos representam o atraso, assim como as inúmeras malas das senhoras nigerianas, que ao olhar dos agentes de imigração pareciam “suspeitas”.
O agente de imigração, um homem negro que tentava ser simpático a despeito do papel que desempenhava, perguntou às duas senhoras que estavam na minha frente o que tinham nas malas: aipim (mandioca)? E elas respondem enfaticamente: “no, no”. Ele insiste: “vocês tem certeza de que não tem mandioca, fufu?”Elas respondem: “no sir, no sir”.
Foram conduzidas para a esteira do raio –X , que seria a prova dos nove. Caso fossem “pegas na mentira”, isso poderia custar a volta pra casa, dali mesmo.
Eu vinha em seguida e ele pergunta: “você vem da Nigéria também?”. Respondi um não relutante. Eu sou de Salvador, portanto quase respondi: “provavelmente sim, quem sabe?”. Porém ali não era o momento de falar de diáspora.
Foi quando então presenciei um dos momentos mais tristes da minha jornada. Ao abrir a mala das senhoras nigerianas, um outro agente de imigração, um homem branco, cometeu umas das maiores violências que a policia imigratória pode promover, que é abrir uma mala e vascular tudo que tem dentro. Ele encontra um embrulho. O olhar das senhoras é apreensivo. Ele abre o pacote, envolto em vários papéis e sacos plásticos e exclama: “isso é um frango?!” e mostra o frango para seus colegas com ar de deboche. As senhoras aguardam atônitas o futuro do embrulho. Por fim veio a sentença: “Isso aqui não pode entrar nos Estados Unidos da América”. Imediatamente, ele jogou o frango no lixo.
A reação das senhoras recém-chegadas do voo de Lagos é desesperadora. Exclamam um “Ohhhhh” de indignação. Estalam os dedos, dão voltas no curto espaço dentro da sala num movimento que lembrava algo como uma dança. A vistoria acabou. Saíram da sala cabisbaixas e em silêncio, fechando suas malas antes tão organizadas e agora bagunçadas.
Minhas frutas, alimento do meu filho, também foram jogadas no lixo.
Até hoje me pergunto o sentido o significado do frango naquela mala. Seria um presente para alguém saudoso da terra natal? O tempero, condimentos, o modo de preparo impregnariam o alimento de um sabor que levasse alguém de volta para casa através do paladar?
Ou o frango teria um sentido muito mais pragmático? Enquanto dos Estados Unidos 1 KG de peito de frango custa cerca de 2.551,29 Nairas nigerianos ( pouco mais de 8 dólares), na Nigéria, o mesmo alimento custaria 1.200,00 Nairas (pouco mais de 3 dólares), ou seja, mais que o dobro do preço. Um kilo de laranja na Nigéria custa cerca de 320 Nairas, enquanto uma garrafa de vinho custa 1,200.00 Nairas, o mesmo preço de um Kilo de frango. Um kilo de carne custa mais que o frango, 1,540.00 Nairas. Dito isso, arrisco afirmar que, na Nigéria, frango não é algo barato, pois está na mesma faixa de valor que uma garrafa de vinho e um kilo de carne.
Eu especulo se a razão de ter trazido o frango não foi motivada por questões econômicas. É provável que comprar frango nos Estados Unidos fosse algo impossível, devido ao preço mais que dobrado em relação ao mesmo produto na Nigéria. Assim, seria possível comer frango na terra natal, mas não na “terra do Tio Sam”. Pode ser que optaram por trazer o frango, já tratado e temperado, que com sorte sobreviveria à longa travessia pelo atlântico.
O fato é que, fosse por uma razão ou por outra, o frango, possível artigo de luxo, virou lixo. Fossem por razões culturais, afetivas ou pragmáticas, as frutas, o frango, nós mesmas e nossas marcas e heranças culturais não eram benvindas na nação que os estadunidenses ainda insistem em chamar de “terra da liberdade.”
Esse episódio é só para afirmar aquilo que já sabemos. As politicas imigratórias tem cor, tem classe social e tem como alvo determinadas partes do globo. Além disso, negros e qualquer não-branco nos Estados Unidos podem ser vistos como um “inimigo externo”, mesmo que nascido no país, sobretudo agora, na era Trump.
Nos Estados Unidos, dificilmente uma/um turista ou um residente alemão, francês ou inglês branco seria tratado da mesma forma que eu e as senhoras nigerianas . Os imigrantes de tais nações européias, tais como italianos e até mesmo irlandeses que até algum momento foram tratados como “os negros da Europa”, após uma geração já estão integrad@s na sociedade branca daquele pais, inclusive incorporando os preconceitos contra homens e mulheres negras.
Andando pelas ruas de Nova Orleans, meu destino final, uma cidade tão negra quanto Salvador, foi possível sentir toda a tensão racial e social do momento. É facilmente perceptível a incerteza dos imigrantes que tem traços negros e indígenas, a desigualdade, a fome (sim, fome), o analfabetismo e a pobreza da população afro-americana, a violência policial e patrulhamento promovido pela população branca sulista que elegeu Donald Trump.
Naquela cidade negra, o nome dos blocos de carnaval remetem à mitologia “greco-romana”, o rei e a rainha do carnaval são brancos, tal como em Salvador no último carnaval. Nos guetos ainda é possível ver os efeitos do Katrina, enquanto os bairros brancos ainda mantem preservada a beleza dos casarões coloniais.
Durante o carnaval, chamado localmente de Mardi Gras, a elite branca local, do alto dos carros alegóricos, joga colares e bichinhos de pelúcia para quem seletivamente decidem que será premiad@ com sua caridade carnavalesca. Enquanto isso, crianças negras pobres imploram para que lhe joguem um brinquedo. Quando ignoradas, o que eu vi acontecer diversas vezes, elas vem buscar consolo num beijo ou no abraço carinhoso de mães, avós, pais e tios.
Crianças das escolas públicas ( todas elas negras) marcham como num desfile do 2 de Julho. São elas o verdadeiro espetáculo do carnaval: tem banda, performance de balizas, meninas dançarinas. Familiares e vizinh@s gritam seus nomes, seguem o cortejo ao lado delas, professoras e professores limpam o seu suor e oferecem água para diminuir o cansaço. A platéia negra grita palavras de incentivo e as meninas e meninos respondem com um sorriso. Diferente das bandas das escolas brancas e das bandas militares, as crianças das escolas públicas dançam enquanto carregam instrumentos. Os “hits” do hip-hop, fazem parte do repertório, inclusive Beyoncé, claro. Para mim, é incrível nossa capacidade de reinventar, apropriar e produzir a tal “cultura afro-americana” seja em Nova Orleans, em Cachoeira, Salvador ou em Cuba.
Tudo isso é ignorado pelo eleitorado conservador, que não admite compartilhar o espaço com a população negra. Estão separados na mesma avenida. De vez em quando, por confusão, cinismo ou culpa afirmam que meu filho é “cute, very cute”, muito bonitinho. O mesmo menino preto, que assim como aqueles que constroem o Mardi Gras, quando se tornarem adolescentes, lhes causarão medo. Racismo e paranóia ameaçarão a vida dessas crianças, o que acabou tirando a vida de Trayvon Martin, Tamir Rice, Ayiana Jones, João Vitor e Joel.
Cheguei a uma conclusão durante o carnaval: nós somos “a alegria da cidade” seja em Nova Orleans, Salvador ou Lagos. Como em outra cidade negra latino-americana, o carnaval de Nova Orleans tem muita violência racial, de gênero e “black face”, praticado com as melhores intenções de ser uma homenagem para a população negra. Esse mesmo povo que “homenageia” elegeu um tirano que promete fazer o que chamam “América” grande de novo…somente para eles.
Desta forma, lá também, é tudo deles, nada nosso.
Imagem de destaque – Sedrick Miles.